quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Ziphius cavirostris (lamentação oceânica)






“Satanás não desceria aos infernos sem levar consigo uma parte viva do céu ou a usar como elmo. (...) A grande mortalha do oceano continuou a ondular, como já ondulava há cinco mil anos.”
– Herman Melville, “Moby Dick”
“...E só eu escapei para contar-te.”

– O Livro de Jó



Crustáceos –
cracas, mariscos.
Águas-vivas? – apenas gaivotas
escapam ilesas.
Coisas aladas que mergulham.
Borbulham volteios no sal aéreo.
O Continente Perdido,
ante a luz das glórias além-mar,
é lembrança que se dilui
na espuma de nosso desejo indefinido.

Uma torre de água

projeta-se no horizonte;
a volúpia irascível
de um anticiclone sem forma.

As crianças perdidas de Mu

acariciam seus órgãos genitais
e as partes mais ocultas
de sua nova forma.

Leviatã deixa atrás de si um sulco brilhante,
o abismo coberto de cãs.
Cardumes de jovens machos
em complô contra o líder encanecido:
serão renegados à zona dos recifes malditos
dos mares mais selvagens.

O mar sibila em minhas veias,
borbulha em meu coração,
interestelar pulsão
que flui e transborda!

Deixe o mar fluir até você.
Como eu, absorva o retrato exato
do momento mais decisivo.
Mas nunca espere o que espera:
não há respostas para perguntas
lançadas ao vento.

Vendavais lascivos e previsíveis
assolam o dorso dos inocentes,
chispam nos molhes dormentes,
torturam o casco fendido...
Tufão de pesadelos texturais.
A tirania fantasmal forjada em fúria insana
golpeia sem trégua o abdômen
dos meninos encurralados
– como pode um corpo tão mirrado
suportar tanta dor?
Kraken do bispo Pontoppidan.

O marujo incauto
perde-se em meio ao jorro de água e vapor.
O mar das Calábrias ferve,
o mar de Perséfone é gelo e vingança.

Do céu azul,
do céu azul nada cai
além de nossas últimas desesperadas esperanças,
montadas em ingênuos mitos alardeados.
Tirem-nos daqui!
Tirem-os daqui...
Ferros e lanças e presas retorcidas,
costelas e terrores de baleia;
um turbilhão como um tacho fervente
dividindo os continentes.
As crianças perdidas de Mu
masturbam-se ao som da voz
dos jovens príncipes atlantes
e estou tão distante agora...

Gema primeva, revolve-se o magma;
nossos sonhos, diluídos em pragma
de tratos e contratos náuticos,
é inútil combate  teologia da contemplação.
Liberte-os do abismo das Marianas,
deixe-os ver a luz do sol!
Liberte-me daqui; se meu instinto permanecer calado
será mais outra história sem final.

Selvagens de bronze
arrombam a porta do camarote,
um relâmpago viril
tatua o destino no convés do navio.
Borrascas não levam embora
o choque entre o primitivo e o mordaz.
Uma voz, de súbito,
rouqueja sobre metafísica.
Onde me encontro?
Quem sou eu?
Em que fenda do tempo mergulhei?
Mais uma vez:
onde agoniza minha jovialidade?

Estrelas agonizantes,
tão pequenas em minhas mãos:
se eu morresse agora, tudo faria mais sentido...
É tão calado o fim do mundo
dentro do meu pensamento,
que não consigo absorver devidamente
o abalo titânico
macrofilmado na película da consciência.
No vórtice do tornado,
no olho do furacão,
encontro minha paz e minha perdição.

Lembro-me da última vez que vi
quem amei mais que a mim.
Incapacitado que esteja
de bem amar o que me seja.
Eu não sou o Leviatã,
mas apenas um desconhecido e patético espectador.
Dois pequenos dentes e uma cósmica solidão.
Ignorado pelo sultão
assentado entre as luas de Saturno.
Pelo senhorio Macrocéfalo banido
para tormentosas latitudes.
Me perdi ao longo do Estreito de Malaca,
Cruzei o Cabo Horn e o Cabo da Boa Esperança,
um mar de lágrimas se derramou e me cobriu
e entre suspiros, as sereias em coro diziam:
“Metáfora alguma há
que supere em beleza seu significado...”
(... e os significados se somam,
interpõem, combinam e se repelem
sem esgotar jamais
o significante.)

O abismo oculta o segredo.

O amor subsiste,
talvez como uma âncora não localizada
de antiga embarcação naufragada.
A chuva é habitual
no reino do pós-guerra,
nas enseadas perdidas
e a envolver
velhos faróis adormecidos.

O velho marinheiro se embriaga de lembranças;
abrem-se as comportas do absurdo;
libertam-se os apenados
apenas para caírem nos braços do vazio.
Sereias também erram:
a dor é a única verdade;
perdem-se as lembranças:
o velho marinheiro se contrai.

Chega então o malfadado momento:
céu e terra tremem
na tonitruante expectativa.
E de repente saltam as placas continentais;
a expulsão de magma vivo
afasta as nuvens circulantes.
Mais alto,
mais alto que os gritos
paira o coro grandiloquente
das perversas divindades.
Chocam-se água e fogo,
saltam os horrendos cetáceos:
o bosque de ferros em suas costas
desprende-se e as farpas chovem
sobre os aturdidos mortais.

O grande maelstrom
não deixa testemunhas terrícolas.
O que era um sonho de independência,
emancipada realização,
coletiva extroversão,
afunda agora na insana convulsão
dos elementos naturais.
Quem dera meus olhos
pudessem esquecer a cena...
Nada pude fazer.

Está tudo acabado,
está tudo submerso
e os séculos que se seguirão
tentarão ocultar a história,
mas eu vi e aprendi a lição,
enquanto o descomunal sorvedouro do oceano
tragava seus minúsculos filhos,
qual implacável divindade.
Uma malignidade desafiadora
a expor seu ponto fraco
na própria covardia.
E toda dor que se pode sentir
acometeu-se sobre a absoluta inocência.
A absoluta inocência.
Absoluta Inocência,
AbSoLuTa InOcÊnCiA,
ABsOLuTA iNOcÊNcIA,

ABSOLUTA INOCÊNCIA,
LIBERTE-SE DAS CORRENTES!
CELESTIAL INOCÊNCIA,
SALTE PARA O SOL!

(Nada pude então fazer,
além de contemplar e chorar...
e com minhas lágrimas
criar um novo mar...
e sobre ele navegar,
para o resto da eternidade...)








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