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quinta-feira, 17 de junho de 2021

Sonho 12 (o passeio / o golem)




Segue em frente a excursão escolar, num ônibus grande, seletivo, muito confortável. Os adolescentes aquietaram sua balbúrdia; estão mais contemplativos e alguns dormem. Dedico-me a admirar a vista da janela, pois intuo que haja muito a ser visto.
 
Deveras! Agora é um desfile extasiante de belezas naturais, inesperada sucessão de magnificências: lagos azuis, dunas com oásis paradisíacos, bosques repletos de flores e borboletas, montanhas com formas inusitadas, praias com lagunas coralíneas, cataratas espumantes, campos verdejantes... Seria, como dizem, o caso de uma viagem que é mais significativa que a chegada?
 
Então, soma-se ao deslumbramento a obra humana: cidades de beleza arquitetônica estupefaciente; torres suntuosas, as pontes graciosas, os parques coloridos e festivos, chafarizes, balões, arcos, palcos ao céu aberto, enseadas com lanchas a prumo, hotéis resort com suas piscinas exuberantes e os milhões de rostos felizes, em toda parte.
 
Reparo que o som dentro do ônibus é a canção Blue Bayou, de Roy Orbison. Viajo na música, embalado pela melodia, enquanto o veículo segue por uma nova via ladeada por árvores dispostas com rigor quase geométrico.
 
E chega-se, por fim, ao objetivo. Numa região que é, por assim dizer, um tipo de jardim botânico, primor de paisagismo, construções em estilo futurista nos aguardam. Anuncia o guia da viagem: “Chegamos! A Feira de Arte Moderna.”
 
Corte. Estamos perambulando no interior do salão de exposição. As atrações parecem um tanto previsíveis, não muito memoráveis... Até que, ajeitado numa ala em posição de destaque, sobre um pequeno tablado, uma escultura notável desponta. Impossível não se deixar afetar por ela.
 
Um tipo de golem – julgo –, talvez feito de ferro ou outro metal, todo preto; uma figura muito magra que está em posição de lótus. Podia representar, de forma bem estilizada, uma criança faminta, ou até um macaco-aranha sem cauda, considerando o tamanho e a forma esguia. Mas é verdadeiramente horripilante. A boca escancarada, bastante projetada, parecendo querer que o mundo se lançasse dentro dela. Os olhos de um negror brilhante, contrastando com o opaco do corpo coberto de caroços e rugas, protuberâncias de ossos e ferimentos, múltiplas deformidades.
 
Anuncia o cicerone: “O nome desta magnífica obra é A Fome. Uma representação não apenas da fome, mas da miséria e do desespero tão humanos e universais.”
 
Como eu gostaria de jamais ter visto aquilo. Que não se retivesse na mente de um jeito tão implacável, tão indecente. Era algo redutor da importância do resto do mundo.
 
De repente, estou em minha cama. Teria o sonho acabado? Impressão de continuidade.
 
Então, aquilo entra em meu quarto, flutuando, vagarosamente, a um metro do chão, na mesma posição de lótus. A mesma estátua. Não é imaginável uma visão mais assustadora. Com olhos agora luzindo como braseiros, vermelhos, diabólicos, ela se detém diante da janela, em frente à cama, o rosto voltado para mim, ainda flutuando.
 
Não consigo me mover, mas uma estranha força começa a me puxar na direção daquela coisa; a coisa e sua bocarra, seus olhos ardentes, sua paralisia paralisadora.

Uma súbita explosão de luz verde interrompe o horror. O sol já está alto: é o mundo desperto.








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