ATO ÚNICO – CENA ÚNICA
Um homem idoso,
de semblante solitário, caminha devagar pela ruas de uma pequena cidade. Evita olhar para os transeuntes – só o faz brevemente com relação a um menino que
passa segurando um algodão-doce.
O HOMEM (pensamento em off)
“É a ingenuidade
o que mais nos envelhece. Meu pai já dizia. Por que duvidar? Eu me lembro bem.
Não obtive benefício algum. Há sempre alguém nos enganando enquanto nos
deixamos absorver pela distração. Regras de sobrevivência em um mundo
capitalista; te fazem duro e garantem o pão nosso.”
Anda mais devagar ao
passar diante do café-bar, olha lá para dentro por um pouco de tempo. Vê homens
conversando junto ao balcão. Atrás deste, uma mulher simples porém gentil
serve-lhes café.
O homem vasculha os
bolsos, mas logo se desanima ao constatar não haver ali dinheiro algum. Olha
para os lados e resolve atravessar a rua. Ruma para a praça localizada logo em
frente. Senta-se no banco, e fica lá pensando.
O HOMEM (pensamento em off)
“A mesma praça. O mesmo banco. Em todos os lugares eles têm esta mesma aparência, em
todos os pontos do mundo.”
É focalizado um
edifício.
O HOMEM (pensamento em off)
“O edifício continua no mesmo lugar... Nenhum avião caiu sobre ele antes
do noticiário do meio-dia.”
A rua e os
passantes.
O HOMEM (pensamento em off)
“O mundo não sabe que você existe. Deve ter lá suas razões... (...)”
O sol entre o
arvoredo da praça.
O HOMEM (pensamento em off)
“Hoje
seria um dia ideal para se nascer. Eu gostaria de nascer hoje. Contanto que
algo diferente aconteça; um outro mundo, um outro tempo... Algo novo e que me
surpreenda, que me conceda a chance de ser alguém...”
O PÁSSARO (voz masculina)
Você leu o jornal hoje?
O homem volta-se na
direção da voz que o interpela e vê o passarinho empoleirado no encosto do
banco, à esquerda.
O HOMEM
Não, não
cheguei a abrir.
O PÁSSARO
E por
quê?
O HOMEM
Porque eu o abro todos os dias e já sei
exatamente o que vou ver. Minha vida não mudará em nada por causa disso... e,
de qualquer forma, se tiver algo realmente surpreendente, vai passar na TV.
O PÁSSARO
É; de fato, é bem difícil que a TV mostre algo muito diferente do
jornal. Mas hoje pode ter acontecido algo realmente importante, a nível
mundial.
O HOMEM
Algo importante, hmm... E o que poderia
ser?
O PÁSSARO
Nada além do que já está diante de você, a
cada minuto.
O homem silencia e admira a rua à sua frente.
O PÁSSARO
Foi só uma
opinião, entenda como quiser...
O HOMEM
Eu estou aqui
precisamente para encontrar algo que os jornais não mostrem. E o que eles
mostram é o mesmo que eu vejo todos os dias, nada mais; nada que me faça...
(pausa)
O PÁSSARO
O que você
está vendo agora?
O HOMEM
Uma vida sem
valor... Vidas sem valor... A única lição que pude tirar desta vida é que nada
tem valor algum. Tudo é tão vão, tudo tão frágil e falso, como cenários de
papelão... As coisas mais contraditórias, o bem e o mal, o prazer e a dor, tudo
isso acaba sendo igual no final. Há quem veja beleza nesta identificação, mas
eu nem mesmo sei identificar a beleza. Eu gostaria de estar enganado quanto a
isso, mas... não há o que eu possa fazer.
O PÁSSARO
O que
você gostaria de fazer agora?
O HOMEM
Em termos de
possível?
O PÁSSARO
Ahn...
sim.
O homem respira profundamente e esboça um sorriso.
O HOMEM
Agora mesmo eu
gostaria muito de poder tomar um café... logo ali (aponta o prédio descascado).
O PÁSSARO
E por que você não vai, então?
O homem expressa
desânimo.
O HOMEM
Me falta
dinheiro para isso.
O PÁSSARO
Bem... no mundo em que eu vivo, o café
sempre é de graça.
O homem paralisa, olhos e boca abertos.
PENSAMENTO DO HOMEM EM
OFF
“Esquizofrenia. Eu sabia que iria acontecer um dia.”
O PÁSSARO
Você ainda quer café?
Nada de resposta. O homem continua estático.
O PÁSSARO
Sim, você quer café.
Enquanto ouvimos a voz do
pássaro em off (próximo parágrafo), segue-se uma cena: o homem entrando no café-bar, bem confiante e alegre; em seguida cumprimenta algumas pessoas nas
mesas e conversa algo com elas, brevemente; dirige-se ao balcão e lá é atendido
por uma simpática mulher de meia-idade (olham-se fixamente nos olhos por um
rápido instante). Então vemos esta mesma mulher entrando em seu quarto,
sozinha, e logo se admira no espelho do roupeiro. Expressão triste.
O PÁSSARO (voz em off)
“Mas
o café está em você, e nada poderá tirá-lo de lá. Você e o café são um só. Há
de fato um grande desejo, e este desejo é tudo. A este desejo deu você o nome
de café. E não há outro. Você já provou o café inúmeras vezes e certamente
voltará a provar. Você paira sobre um abismo entre o café já tomado e o a se
tomar. Este abismo tem gosto e aroma. E tem grandes janelas panorâmicas,
convidativas para os transeuntes. Tem som de agradáveis e breves conversas
junto a um balcão, sobre o qual se inclina aquela mulher tão atenciosa, mas
cheia de segredos, que costuma chorar de solidão na noite de seu pequeno
apartamento suburbano, envolta pelo seu complexo psicológico de transferência
derivado do amor electriano, à espera de um homem compreensivo e maduro que se
lhe mostre como uma revigorante surpresa há muito esperada.”
O HOMEM (agora sorrindo)
As ideias...
O PÁSSARO (antes de voar)
Mas não se esqueça das
moedinhas, OK?
O pássaro sai voando e o
homem o acompanha com o olhar, meio confuso e muito pensativo. Seu rosto
encerra a cena.
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