quinta-feira, 17 de junho de 2021

Sonho 64 (o menino nordestino / laguna-maravilha)




Sentado num barranco, admiro o bananal. Tudo calmo, simples e tranquilo. Muito sol, e nada de queimação. Flores com muitas cores, e as abelhas sem ferrões. Há colinas, e há um vale que talvez se abra para uma praia; quem sabe, a foz de um rio.
 
Por entre as folhagens, vejo andar um rapaz, um jovem de possivelmente dezoito anos. Traja somente um calção de cor neutra; tem fitas coloridas no pulso esquerdo. Pés descalços. Pele de bronze brilhante. Uma ampla cabeleira encaracolada, bigodinho quase imperceptível, um semi sorriso que sugere mais paz do que mistério. Traços de uma perfeita mestiçagem, posto que a perfeição é mestiça. Latinoamericanidade, por assim dizer.
 
À medida que ele avança pelo bananal, vou seguindo-o com certa cautela. Realmente atraído por aquela presença de tamanha serenidade, aquele brilho humano.
 
Uma praia se abre à nossa vista. Não consigo dizer se um mar, ou um lago, ou um grande rio. Não enxergo a outra margem: o horizonte é nebuloso, matizado. Só percebo a calma das águas, a quase ausência de ondas. O menino lá entra, sempre caminhando, e eu o sigo no mesmo rumo, sem hesitar. É como se eu já conhecesse aquela extensão aquífera, e soubesse da inofensibilidade, do acolhimento.
 
“É esse aí. É ele!” – a voz de minha mãe soa vinda de nenhum lugar aparente. Ela estaria se referindo a mim ou ao menino que agora não mais consigo ver?
 
A neblina das distâncias desaparece, e percebo que estou numa espécie de laguna; a costa é um enorme círculo com um estreito aberto para o mar, ao longe. A água permanece pela minha cintura, apesar de eu me encontrar bem próximo ao centro da formação.
 
Repentinamente, começa a tocar o tema Pepperland, de George Martin (do filme Yellow Submarine). Música deveras maravilhosa! No passo em que a música evolui, coisas belas e exóticas passam a ganhar cena: várias embarcações semelhantes a gôndolas, multicoloridas; sereias, tritões, golfinhos, peixes voadores, rochedos e pilastras encimando dançarinas, navios embandeirados que se aproximam, tobogãs gigantes com ares de montanha-russa, ilhotas com flamingos cor-de-rosa, chafarizes dançantes e até mesmo uma profusão de mergulhadoras-banhistas com coreografias a la Esther Williams... O quê poderia estar faltando, meu Deus?
 
Eis então que, ao som solene de My Love, We Are One, de Ennio Morricone, vem emergir uma formação como que um amálgama de cristais lapidados, e no seu topo vislumbra-se um ser jorrante de luzes, na máxima deslumbrância e exuberância, de cujas costas sobressai um como que misto de cauda de pavão com harpa laser de Jean-Michel Jarre; difícil é saber quantos braços tem o ser, ou se aquelas formas cambiantes podem ser ora asas, ora nadadeiras; se há um só rosto ou vários. A visão total, bem como a compreensão total daquilo, me transcendem e me absorvem.
 
“Ó Grande Deusa!... Ó nossa Deusa!...” – cantam as criaturas muitas. Percebo que agora estou me apoiando numa barbatana dorsal do tamanho de um ser humano; mas o animal incógnito aos meus pés é deveras dócil. Entontecido pelas visões, ainda assim me pergunto, em pensamentos, pelo paradeiro do menino que uma vez busquei. Imagino-o, então, absorvido em tudo ao meu redor; parte de todo aquele festival, aquele carnaval, aquela celebração que é mais um extravasamento de alegria vital do que um típico louvor ou culto a uma divindade...
 
E a música cessa. De repente, estou diante de um pequeno tanque de vidro, cheio de água, com barquinhos de brinquedo flutuando. Algo bem simplório. Olho em volta. Estou numa sala parecida com um laboratório; talvez a ala de algum hospital, ou hospício, ou uma escola, um instituto... Uma fria, fria experiência.








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