terça-feira, 9 de julho de 2019

Pequeno Coração (mistério particular)





Pequeno Coração, assim o chamavam, lembrança tangível de toda descomunal fragilidade. Minúscula presença magnética da saudade de um pequeno sol. Ele entrava e saía dos aposentos em passos leves e inaudíveis como um passarinho alegre. Algo como um aroma doce e instigante permanecia sobre as demais auréolas. Todos o amavam; não podia ser de outro modo diante do sorriso que parecia conter o Universo. A visão era ora nítida, ora incerta, mas era sempre ele – o belo jovem de cabelos castanhos, o estudante, sua bicicleta assobiante, como ele apertava os olhos, como esticava o pescoço ao falar, como se espreguiçava; todas aquelas sutilezas que mais faziam chamar atenção quanto mais simples e puras eram elas.

Então, de repente, não se sabia quais dias vieram antes e quais vieram depois. Não se via claramente se por algum canto ou esquina ou esconderijo não compartilhado o mesmo ser angelical quebrava seu sorriso e vertia seus rios nunca vistos de angústia incompreensível. Ou nós mesmos. Ou ela.

Oh, sim, ela! Eu a via de pé no meio da cozinha, sua bela cozinha matinal; ela, olhar vazio ou disperso, expressões genéricas, sinais do mistério da dor impronunciável. Uma mãe. Mãe... um ser reduzido a uma sílaba tão simples quanto complexo é o peso a se carregar. Novamente, o que não se vê é o gigantesco que não se deixa tornar palavra. Logo, não raciocínio. Uma fuga óbvia para a manutenção de algum sonho enevoado.

Novamente, o sonho se dilui e se recompõe. Agora é como flashes ou slide show mostrando cada cômodo das casa que por fora é de paredes de tijolos à mostra – lindos, perfeitos, brilhantes – (...) As frases soltas ao vento: “Ele era um bom moço.” “A casa ficará diferente.” “A loucura dela é incurável.” Mas parecem frases sem sentido agora. Apenas sons. Num mar de fúria que é o mundo.

“Esse é o coração dele... o coração do meu menino... a única coisa que dele sobrou ...” Quando ela não estava agarrada nele, o deixava sobre a geladeira. Os outros podiam vê-lo, mas não tocá-lo. Não que quisessem realmente tocar ou possuir aquilo. Afinal, era tão somente um minúsculo patinho de plástico, amarelo, de no máximo seis centímetros. O menino brincava com ele dentro de sua banheira até os três anos. A imagem disso fixou-se na alma daquela mãe como uma necessidade absoluta, imperativa, de uma eternização. No fim, todos que a viam assim só podiam imediatamente pôr-se a chorar (mas sempre o disfarçando), enquanto ela sorria absortamente, olhando para uma inescrutável distância nas profundezas de seu mundo interior.

(...)


(Inacabado)






Photograph by: Ingrid Pape-Sheldon