quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Mestres do coito utilitário





Não preciso explicar.
Deixe o seu corpo falar.
Falar sobre o que me moldou
nas entranhas da terra;
sobre o último pôr do sol
que compartilhamos sem desentendimento;
sobre aquela vírgula benigna
que em algum ponto do espaço-tempo
se abriu para minha nova forma.
Considere as mentiras que lhe sustentam,
considere as mentiras que lhe engrandecem
e pergunte a si mesma
se você ainda é uma “cristã”.
Você precisa pecar para sobreviver.
É o que você diz.
Não que eu esteja julgando –
apenas faça o que você sabe fazer.

A hora é agora.

Deixe o antigo pranto morrer
com as memórias que se repõem.
Faça algo com a sua hábil mão
para que algo desperte com destreza
em sua compreensão.
Tentaremos, conseguiremos um meio
de escalarmos a hierarquia venal,
talvez o compatível sucedâneo para
nossa famigerada maldição,
a Grande Decepção Vital.








Diôsefe Macondos, o terror dos psicólogos





Nosso diálogo é mais franco do que consigo suportar. Concordamos em algo, eu sei, mas mera concordância nunca foi suficiente. Pelo visto você é um ótimo profissional – aí é que está toda a tragédia:

Deus sabe que tentei ser normal, em visões cristalizadas fluindo através das partituras amassadas, notas musicais dançando loucas no ar como singulares símbolos fálicos, yones e lingas tratantes e versos horripilantemente sólidos de funérea osmose afrodisíaca envolvendo-nos em paralelismos comportamentais (e comportamentalistas) entre lapsos verbais comprometedores, entre salas e corredores, entre os loucos para fugir das horas e dos minutos – ameaças diminutas –; crises de inspiração psicótica autotrófica e o escambau que... Tá me ouvindo?

Minha testa dói... e a paranoia dobra mais uma esquina em busca de sua vítima. Sei o que acontece em dias assim, ninguém pode me enganar... Não há novidades para quem já se considera mais velho que o universo... e tão inútil quanto. Nunca poderemos descrever o que está além das palavras e das representações dos pseudoartistas que levamos para a cama em espírito todas as madrugadas sem maiores cerimônias. Sim, sabemos tudo e muito pouco; sabemos até demais das teorias assassinas que nos envaideceram sem o prometido prestígio; aprendemos tudo sobre psicologia e esquecemos de nós mesmos... Entre os loucos para curar a loucura falamos de todos os nossos traumas e nada se resolve...

Mas já descobri a solução. Acho que sim, deve ser, talvez – farei com que seja a solução:

Serei outra pessoa. Sou outra pessoa. Andando em círculos num cubículo parmenídico de espaço e tempo... Outra pessoa... recomeçando do zero... num filtro de rugas... que se move e descansa sem nunca se conhecer...

(Ruídos de dentes rangendo)

(Ruído de papel sendo amassado)








O trato





Eu vejo com seus olhos,
cheiro com seus lábios secos,
choro o suplício carnal do seu corpo mirrado,
assim, atado à cama branca e estreita.
Devo, porém, cumprir o trato...
 
Nenhuma mancha fere a parede caiada,
nada mais zomba
das cicatrizes mal dissimuladas,
ninguém mais ri da sua piada velha.
Por favor, não pense tanto.
Você não precisa fazer nada, e nem o poderia;
confie em mim.
Apenas sinta-me correr em suas veias,
dançar sinuoso e azul nos espaços vazios
da sua memória torturada.
Sinta-me pulsar em seu peito.
A angústia está além de seu conceito;
certamente não é um conceito
que lhe faz gemer.
Conceitos, meu amigo,
não têm sangue, nem carne, nem podem
se arrepender inutilmente.
Meu delicioso amigo,
é triste, mas inevitável.
Faz parte da morte.
Juntos nos acabamos:
Shakespeare adoraria essa.
Você me chamou, agora me rejeita;
mas não vou me remoer por isso.
Minha fidelidade transcende sua incompreensão.
 
Você me recebe com esses anticorpos
mal treinados, pobrezinhos...
Só eu posso controlar o meu ciclo
e minhas mutações.
Já para você isso é pecado;
eu conheço o seu deus.
Conheço muito bem você também,
mais do que você mesmo,
porque lhe conheço por dentro...
 
No fundo eu admiro você.
Temos muito em comum:
desconheço minha razão de ser,
muito menos meu dever.
Apenas o cumpro.
Aquele carpinteiro do Pequod,
lembra? Moby Dick.
Fazendo caixões,
fazendo próteses de pernas.
O cara nem sabia por que ele fazia as coisas.
Apenas ia em frente.
 
É assim que deslizamos
rumo ao nosso destino.
Ao grande inevitável.
Simplesmente afundamos,
e sem mais explicações.
 
Como fazem os deuses
e todas as bolsas de sangue
que julgam pensar e sentir.









Um dia ele vai voltar (não culpe o ácido)*





(Sim, ele voltará.
Cérebro meio destruído por ácido,
sonhos liquefeitos escapando das molduras.)

I

O homem que feriu você voltará um dia,
com a melhor desculpa
desde as oficiais lágrimas americanas
sobre Hiroshima.
Na mão, alguma compensação
ainda não reconhecida pela Justiça.
Um pouco de diálogo,
lembranças de algo que só existiu
na mente daquela que um dia amou de olhos fechados
e que agora querem voltar a se fechar.
Quando ele abraçar você
e pedir outra incondicional rendição,
saiba que os únicos idiotas que o mundo não tolera
são os desprovidos de malícia.

(Ainda somos fãs dele.)

II

Ele vai chegar, sim,
o bom Espírito do Natal,
com todo o encanto dos sinos e dos cantos,
mais sutil que a mais mortal sombra.
Você se pergunta se a barba dele é legal de puxar,
e como as renas aprenderam a voar;
se o calor do verão tropical
não o força a tirar o casacão,
e porque os presentes
estavam antes escondidos no porão;
e tem a dura certeza
de que suas cartas ao Polo Norte foram ignoradas
ou transviadas para não se sabe onde.

(Ele era um cara legal,
mas não o reconheceríamos hoje.)

III

“As trombetas soarão,
os céus estremecerão,
– cumprir-se-ão as profecias!
O Cordeiro ocupará o seu trono
e julgará as nações.
Quando ele voltar,
radiante, onipotente,
onipresente como a Mitologia
e implacável como o Desespero,
e fizer então a rígida separação,
será inaugurada a tão esperada
Era da Redenção Pós-Tecnológica.
O sorriso dos eleitos engolirá suas orelhas
e todo o seu passado de iniquidades,
como fogo eterno engolindo os discernidores.
Tremei, devedores do dízimo!
Ele chegará feito um relâmpago
de horizonte a horizonte
e ninguém diga: ‘vamos lá’, ou ‘venham aqui’,
pois sua glória brilhará
nos meandros da Internet.

(Eu assisti suas performances
na última encarnação.)

IV

Ligue a TV! Ele vai chegar
com o mesmo sorriso de candidato
beijador de criancinhas;
voltará com uma arma mais possante
do que aquela que arrasou meu habitat.
Um passado reformulado,
por quem bem entende de reformas
(sobretudo em jardins).
Uma esportiva imagem de inocência
pedindo paciência e atenção,
ainda lamentando, discretamente, o trágico fim
de um conhecido arquivo humano.
Quando ele voltar,
trará consigo toda uma legião
de continuadores da velha tradição.
A tradição que, afinal,
jamais fora um homem.

(Magia?
Ah, você a procurava também...
E ainda procura, eu sei.
Não culpe o ácido.
Algo mais sedimentou a rebeldia,
corroeu a utopia não vigilante
que pouco se esforçou para entender...
Em algum lugar repousa a fé
nas imaginativas tentativas de canalização
das mais urgentes revoltas.
Mas aquilo que renovaria o mundo
já fechou todas as portas
de sua revolucionária percepção.
Cinco décadas perdidas
e agora...)

V

Uma ideia corroída,
uma sombra alva de pureza,
um semblante à imagem do Super-Homem que matou Deus,
um emblema invertido extraído
de sagradas iconografias e...
algo já voltou,
porque nunca se foi.
Diante da bandeira
as massas estendem as mãos
num espasmo de orgulho e jovialidade,
ampliando os horizontes de sua doutrina.
Os puros e corretos,
agremiados em singulares academias
onde aprendem a massacrar seus dessemelhantes.
Puros... e prontos para purgar o mundo
da escória humana.
Eles estão entre nós
e, através de sua juventude,
talvez ele nos observe à espreita.

Um dia
ele vai nos matar.

(A magia que você procura
será relançada na mais alta qualidade digital.)








* Título alternativo: “Post-rock drama”

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Amor





Ela gostava de ficar deitada na grama
e admirar as curvas de seu novo corpo.
De orvalho impregnara-se o ninho,
mas pôde comprazer-se a ave
que, sem grande esforço,
em breve alcançara a torre.
Ele a tudo admirava,
e diversas eram suas reações ao admirado.
A tela ainda branca,
mas a mente plena de primaveras
impossíveis de ser retratadas.

Já não há mais sangue, já não há mais sede.
Os pés deixando de ser percebidos.
E os gerânios jovens não fazem ruído
crescendo ao longo da alameda verde.