sábado, 31 de março de 2018

Narrativa sem tempo





       Um jogral, na beira de um riacho,
abandona a lira na relva
       e respira os raios do sol...
e a bruma residual canta
a álgebra ilógica do sentimento.
       O dia decora a fragilidade
diante da carência de um abrigo;
       nossos abrigos cristalinos nos aguardam
no final do caminho sempre verde.
       A revoada de flamingos
matiza a idealizada ausência de aflições
que atmosferiza os desejos terrenos.
       Trepida-se e convulsiona-se aqui
       o que anseia pelo frenesi criativo;
o que se conteve
       das volúveis intenções humanas,
ainda tão fora de seu tempo...
       Tão impulsivas na aquisição da beleza...
Enquanto a beleza flui através de nós
       e reflui no abraço solidário das criaturas.
       Buscamos aqueles que sabem apreciar
todas as atmosferas do(s) mundo(s), sorver
       o relevo cambiante,
expelir de si a nulidade empedernida
que ainda adere às suas memórias
       escoadas.

       E o coletivamente memorizado
vem numa só torrente, preenchendo-nos
de prazeres narrativos. A fonte
       sempre jorrante, sempre brilhante
de magias informais.
       Somos mestres, somos aprendizes.
       Trombetas e clarins.

       E o jogral cinge-se de flores azuis.








Os amuletos de marfim





Os rostos que passam ao lado não mostram expressão; posso seguir com minha imaginação os borrões de luz nos cantos de meus olhos – e os borrões continuam sem expressão, naturalmente. Alguma coisa a ver com a redondeza do sol. Tudo que faça ofuscar e matizar.

Sapatos pretos. Bueiros. Não gosto disso. Os letreiros de neon continuam insistentes, apesar do dia claro. Eu preferiria uma cidade menor – não sou nem Frank Sinatra nem Liza Minelli.

Deveria haver um cometa logo acima, sei que sim... Mas ele deve ter feito um acordo com as nuvens. Elas se concentram estranhamente sobre onde eu passo.

Essa vontade súbita que meu olho tem de pingar diante das árvores no acostamento tem muito a ver com a relação canção-cabeça-travesseiro. De fato, sempre existe algo muito mais transcendente do que sonham nossas guitarras elétricas. E mais uma vez me vem a certeza de que essa transcendência se encontra no mais cardíaco âmago da realidade experimentada. A volubilidade das coisas não me tira a constatação.

Ora, a cidade é menor do que antes: é como deveria ser. O gigantismo nunca existiu. Muito menos o neon: é tudo imaginação, tudo fumaça. Os sonhos podem ser soprados – apenas os passos prosseguem ruidosos na calçada. 

Mas, se o dia é tão claro e a cidadezinha tão frágil de se entender, por que então parei diante da porta-de-abertura-escura que corta a rotina, ou melhor, o óbvio? Deve ser o fator transcendência, ou o cometa, que cansou de brilhar à toa. Bem, de qualquer forma, não existe mais cometa, nem cidade, nem calçada, porque já entrei pela porta e o que existe agora diante de mim é apenas um corredor.

Não, não há nenhum corredor diante de mim. Não como o entendemos: trata-se de uma loja, uma loja comprida e profunda, um tanto escurecida + nebulosa, mas repleta de detalhes fantásticos a serem consumidos pelos olhos e pelos dedos.

Sim, agora me lembro! – é este o lugar que eu vinha procurando, desde que saí do vilarejo vizinho, escalei a colina verde e passei a manhã ensolarada vagando/vasculhando pelo centro populacional. Sim, tudo se encaixa. Estou mesmo no lugar certo. Basta agora lembrar pelo quê eu vinha vasculhando – isto tudo TEM QUE ser real.

Não sei se meus olhos e dedos têm permissão para saborear os exóticos acervos. Acervos, digo, pois o lugar mais parece um museu, se bem que o que parece pó é até bonito, um grande efeito. Pó de artifício: como nunca pensei nisso? Talvez haja teias de aranha de artifício aqui.

Os balconistas (balcão à direita) devem ter muito a dizer, mas nada fazem além de folhear antiquíssimos volumes. Afeiçoei-me pelo mais idoso, apesar da expressão austera, talvez devido ao turbante que usava, ou às sonoras pulseiras. Um conjunto pitoresco... adequado ao ambiente.

Uma cabeça de unicórnio, empalhada (?) em lugar de destaque. Relicários e estátuas. Fetiches voduístas. Livros em quantidade inumerável, souvenires indescritíveis e um tanto atraentes. Vestimentas incríveis suspensas ou em manequins. Tabuleiros com gravações místicas, cifradas, intrigantes. Candelabros e candeias de muitas formas. Um trono ornamentado de esmeraldas; sobre ele, um ídolo de madeira nada majestoso. Incensórios a emitir eflúvios saborosos – milenares pranas. Máscaras com múltiplas expressões e cores entremeadas de cabeças encolhidas que parecem espreitar... e eu revido com minhas espreitas – aliadas a um desejo sincero de interação.

Um tremendo susto! levo ao ver o velho de turbante bem ao meu lado.

– May I help you, Sir?

Bom saber que ele sabe um inglês básico, pois inglês básico eu também sei.

– Do you have something special to show me?

– Yeah, yeah. Just follow me.

"Ele é Mongol" – diz uma voz em minha cabeça. Sigo-o até uma pequena mesa que parece ficar bem no meio da loja/antiquário. O homem pega de cima dela uma caixinha vermelha e a estende a mim. O jeito que ele me olha parece pedir ou, quem sabe, ordenar que eu a abra. Sorrindo com um leve toque de constrangimento, tento abri-la e percebo que é um tanto difícil – chega a ser cômica a tentativa demorada de destrancar o pequeno trinco dourado. É mais cômico ainda por causa do olhar irritantemente calmo do homem sobre mim. Mas consigo a façanha, e encaro então o conteúdo.

– These small ivory-made pieces concentrate a sort of energy that only a phew would comprehend...

São pequenas peças de "marfim" (podem ser em osso ou em dentes de animais, não sei dizer) de aproximadamente nove centímetros, alongadas e pontiagudas. São poucas, mas não consigo contá-las. Lembram dentes de tubarão, embora de formato mais fino. Há diferenças sutis entre elas, detalhes dos entalhes. Julgo que sejam amuletos. Certamente algo bem místico.

– They have their names and their own skills. I'm sure you'll find one which fits your needs. But you must choose it soon. Your great chance.

– Names? You said?

– Yeah, yeah. Look closer... Here is Mohammed. Here, Moshe. Uhm... let me see... Buddha... Yeshua... Zarathustra... Lao Zi is here. And others...

Segurando-os e comparando-os, percebo que o diferencial é quase sempre no meio do objeto. Seja uma aparente torção, ou ranhuras, ou buraquinhos. Natural agora que eu concentre minha atenção naquele que corresponde à minha cultura na atual encarnação. Ele é simples, porém muito intrigante. Seu centro possui um tipo de cintura que é uma torção espiralada idêntica a um dente de narval ou chifre de unicórnio, e bem no meio dela, um orifício quadrado que atravessa o objeto, como que à espera de um cordão para ser pingente. Difícil saber o que Jesus Cristo teria a ver com aquilo... Poderia eu saber?

– Fico com este. Ops... I said, I'll buy this one.

– Great, great choice! 

Corte súbito. Estou caminhando por uma estrada de terra, que atravessa um campo. Um pasto. Ambiente idílico, porém mais sereno do que deslumbrante. Creio que seja de manhã, e provavelmente no dia seguinte à minha singular aquisição no antiquário da cidade mutante cujo nome ou localização já esqueci.

Óbvio que estou pensando nos tais "amuletos" de "marfim" e no que eles poderiam significar. No que consistiriam as energias supostamente contidas neles, e as tais funções ou "habilidades". Tento me lembrar de mais alguma coisa que o velho Mongol poderia ter me dito, acerca de como utilizar ou acionar os dispositivos, se é que são mesmo dispositivos.

Então as coisas ficam repentinamente mais claras. Eu só adquirira um: o tal Yeshua. O popular Jesus. Estava o carregando comigo, num bolso. E compreendo, por intuição, que a maneira adequada de usar o objeto (pelo menos para saber para quê ele servia!) era, digamos... inserindo-o no meu corpo. Não sei nem de quê jeito, e nem aonde inserir... Sorrio então porque acho essa questão engraçada; aliás, não mais e nem menos engraçada que as grandes verdades costumam ser.

A estrada agora adentra uma região mais arborizada, típica floresta ou bosque. De aparência acolhedora, hospitaleira, serena, receptiva. Gosto do cheiro do ar puro, o misto de aromas de possíveis flores, e folhas, e seivas. Nem posso hesitar em seguir em frente – mesmo sem saber conscientemente aonde a jornada me poderá levar.

Logo me vejo seguindo pelos flancos do que pode ser uma montanha; no caso, a topografia só levemente inclinada. A estradinha é pequena; a mata que a ladeia é espaçada e possivelmente fácil de se deixar embrenhar, se tal for preciso.

Repentinamente, um "clique" iluminado e iluminante dentro de minha cabeça. Certeza de que o "amuleto" já está, 


(...)



(Inacabado)








Não culpe a vida





Autoajuda quântica,
terapia holística,
energização tântrica.

Resignação espírita,
harmonia mântrica,
conscientização mística.

Não culpe a vida,
você procurou fora dela a saída.
Não culpe a vida,
ela não começou ainda a ser vivida.

Sina astrológica,
aeróbica carismática,
esbravejamento pentecostal.

(E, de repente,
um olhar amigo,
uma verdade pragmática
e uma boa folga.)

Não culpe a vida,
ela não tem culpa de ter sido esquecida.
Não culpe a vida,
você julgou a matemática divertida.

(We’re crawlin out,
we gain a dime to tell the story.)

O vermelho é índigo,
o amarelo é turquesa:
você está autorizado a renascer agora.








PSYCHO





Eu lavarei o teu cérebro em água corrente
e o almoçarei ao molho champignon.
Subirei nas paredes curvadas
do teu superego inflado,
saltarei para dentro das tuas pupilas,
nadarei na tua íris cor-de-azeitona
e beberei o humor vítreo
da tua esclerótica pouco vascularizada.
Me enforcarei com teu cinto,
ressuscitarei no terceiro dia
apagarei tuas velHinhas
num sopro de hálito morbidoentio.
Chorarei uma cascata de sangue sujo
sobre tuas cartas não seladas.
Trancarei minhas comportas
e escancararei tuas saídas de ar.
Costurarei tuas palavras
com o fio da meada que regurgitarás.
Cartunesca evisceração.
Tico-tico no teu fubá fumegante,
maçarico nas tuas juntas metaLLicas.

Concórdias agônicas,
carcomas vaselínicos,
chocolates anestésicos...
Mantras eutanásicos de paixão asmática!
Ática!
Ática...
Ática.

Ampliarei os polaroides da minha nova descoberta,
assistirei a tua autópsia em negativo
e me inundarei com tua luz...
Cavocarei tua sepultura
até roçar o topo do teu Everest.
Escalarei teus monumentos graníticos,
classificarei teu crânio
entre neântropos e pós-apocalípticos.
Brindarei à nossa desunião
com um coquetel de fármacos alucinógenos,
brotarei das tuas feridas
feito pastéis-de-vento em caçarolas borbulhantes,
soprarei nas tuas narinas
minha cafeína verborrágica.
Saciarei o teu apetite com minhas sementes
e introduzirei a língua
no orifício do teu ofício.
Fim da picada.

Agora andarei,
pararei,
tremerei,
cairei,
babarei,
encontrarei um modo de te horrorizar
sem te despertar do sono hibernal
– discórdia buco-facial –
nestas avenidas que inundarei,
estuários que transbordarei;
porque daí te lambuzarei,
quebrarei,
chocarei teus ovos,
incandescerei teu gás,
rasgarei tua pele com meus caninos,
recitarei teus poemas à luz de velas,
batucarei nas tuas panelas
– me emprestas teu reco-reco?
Câmaras de eco insanas e então
te perseguirei pela madrugada metropolitana
até teu pequeno quarto mundano;
te estrangularei friamente, apaixonadamente;
depois me sentarei calmamente
e lamentarei eternamente tua partida;
me deitarei sobre teus pecados,
pintarei de azul a tua vida colorada,
romperei até o outro lado.

Vegetando num solar maldito,
tremulando na torre de um castelo assombrado,
temperando suflês causticantes
ou falsificando neuroses emolduradas,
sigo troteando a invernada
das épicas estâncias adjacentes
aos teus rubros enleios cavernosos. (!)

Hipocondrias gelatínicas,
mequetrefes multimídia,
revoluções isoscélicas,
ciclones intracranianos:
mas isso não me bastará!

Por isso...

Exultarei,
explodirei molusco e terrífico;
uivarei para a lua do teu mel,
melecarei a bula do teu xarope
e trincarei nos dentes os caules dos
teus agriões senis
(só mais quatro existências
e estaremos livres do contrato infernal);
derreterei, corroerei, pulverizarei
tua panfletagem iconoclasta,
derrubarei teus ícones e ídolos;
íncubos e súcubos te arrastam ao vulcão do sacrifício,
correias e arreios rompem toda esperança
de teus planejamentos marsupiais;
chuva de porongos intumescidos
e lúgubres fogos-fátuos de artifício
expõem ao mundo a cruzada satânica
dos jovens querelantes sardônicos;
o antro dos prazeres bubônicos
não me porá refreios;
arrancarei, mastigarei o lusco-fusco
das tuas novas cãibras trevosas
porque nada me deterá em meu ímpeto fuliginoso;
nada me porá de 4 no minuto supremo;
arreganharei, arregaçarei, dilacerarei (matatirarei),
rasgarei tuas bíblias colecionadas, teus diários
e as ridículas agendas presenteadas,
calcificarei as membranas da tua medula
e todas as estruturas dormidas, adoecidas,
recém-convalescidas;
e, para finalizar, calarei tuas ricas reivindicações
com trezentos e um fortíssimos socos
no teu delicado plexo-solar
e me jogarei do décimo terceiro andar
das tuas ilusões quimiopáticas
até me arrebentar
em 699 mil estilhaços de paixão estroboscópica.

(Estas novelas intermináveis...)








O foco





Eles esperam por você.
Eles sempre guardaram um lugar para você.
Levarão você ao seio das cores,
alçarão você aos céus e aos mundos,
mostrarão de perto as ocultas doçuras
do Reino dos Encantos Perdidos.
Você verá de perto os seres e os lugares,
cavalgará e voará pelos ares
saturado de heroísmo fantástico.
Os seres alados tomarão você pela mão
e farão questão de levá-lo
ao ponto mais alto e glorioso,
para que contemple dali o confronto inofensivo
dos batalhões de figurantes multiplicados.
As espadas entre os bosques,
as faixas de luz entre as estrelas,
o rubro poente a se distanciar,
danças em branco e preto a lhe convidar...
Você fecha os olhos
e tudo está lá, dentro de você,
um universo chamado Você,
do qual você jamais
se separará.

E a luz se acende
e o sonho se apaga.
Você sabe que foi você mesmo que permitiu isso.
Isso também era preciso
para sua própria paradoxal sobrevivência.

Você sabe mais do que ninguém
que o sonho não pode ser adulterado,
mas preservado em sua íntegra.
Seja quais forem as justificativas dos pérfidos
censores ou editores.

Sim, é você mesmo:
íntegro e invisível.
Você mesmo,
sob o foco de sua lente.








Cena 5 Tomada 8





Fale. Não importa, não adianta, não vou prestar atenção. Talvez a culpa seja das suas sobrancelhas... ou eu que não consigo desligar o meu sensor de detalhes. Bem, agora você já falou. E certamente espera uma opinião. E eu não posso dizer que não lembro do que foi dito. Estou preso em mim mesmo. Não sei se isso é bom ou ruim.

Respondo algo insípido, neutro, banal; no entanto tento transmitir segurança em minhas expressões, gestos, tom de voz...

Acho que deu certo.

Ou não: você parece ter levado muito a sério a bobagem que falei. Não sei se isso é...

“Vamos para um lugar mais desinibidor” é a solução aparente. Seremos transparentes?

“‘Isso’ é um lugar desinibidor?” Não importa agora; vamos retornar ao assunto (algum de nós está bem confuso). Fale.

Fale. Não importa, não adianta, não vou prestar atenção: há uma coceira na minha sobrancelha. Há um brilho singular no seu olho... e ele (o brilho ou/e o olho) parece me dizer mais coisas que todas as gaguejadas palavras... diga!

(silêncio)

(totalidade)

(intensidade)

(sem comentários)

Não sei o que pensar (ele vai embora devagar, meio trôpego). Impressão de que estão nos filmando. Personagens de um livro em branco?








Rapaz esperto





Rapaz esperto,
amigo da sorte,
pensando trilhar
os passos do sucesso.
Rapaz imagem,
desdenhando a morte,
juntando dinheiro
e abraçando o excesso.

Rapaz exemplo,
supõe-se equilíbrio,
diverte seu ego
escolhendo amizades.
Rapaz urbano,
desfruta do arbítrio,
estuda e frequenta
as noites da cidade.

Rapaz astuto,
o rei da lorota,
é gentil com a presa,
dispensa a fé.
Rapaz orgulho,
trabalha e vota,
só não desconfia
que ele nada é.








sexta-feira, 30 de março de 2018

Estou pensando exatamente agora





Não há nada que você possa fazer:
você pode bater os pés
ou quebrar as suas obras de arte,
mas não pode me impedir de pensar.
Se você por acaso me vir no canto do salão,
aparentemente imerso em autocontemplação,
saiba que não me encontro realmente ali.
Se no meio da roda etílica
as palavras de mau gosto jorradas parecerem me entreter
e na calçada meus olhos mirarem o caminho adiante,
entenda que algo oculto de meus olhos físicos
inspeciona-lhe minuciosa e desavergonhadamente
o corpo e a alma.
Estou pensando, mesmo sentindo,
mesmo dormindo, mesmo extinto.
Desculpe, mas só resta a você se conformar.

Dou-lhe o presente de minha transparência
em troca da sua que roubei por puro instinto.








Sessão Bang-Bang





Estou sentindo um gosto familiar,
um cheiro de chuva negra.
A primeira reação é não acreditar
e a segunda é morrer
de tanto rir.

Sessão Bang-Bang:
todos em volta da TV.
Estamos protegidos neste apartamento,
mas há uma arma na sua gaveta.

Estamos nus agora.
Macacos depilados parecem tão frágeis/doentes.
Somos fugitivos agora,
porque tentamos evoluir.
Nascemos para fugir.

Sessão Bang-Bang:
todos em volta da TV.
Estamos protegidos neste apartamento,
mas há uma 12 no seu armário.

Sente o meu 38.








A periferia do Império





Dardos envenenados voam em curva por sobre as casas de barro e chumbo dentro das quais a população se agacha para orar suas orações secas e plásticas como as circunvoluções dos cérebros dos seus deuses alto-falantes. Mas quase ninguém ali se dá conta de que todos os dardos e discos farpados tão comuns nestas noites festivas são lançados e recebidos pela própria parte simplória da população. É esta parte que geme e chora seis dias por semana e aproveita o sétimo para extravasar sua frustração em forma de pedradas sobre as novas atrações deformadas geradas em laboratório que incrementam os palcos e picadeiros dos shows de aberrações oficial do governo imperial. Uma visão superficial poderia apenas dizer: este populacho é que é seu próprio algoz. Apenas uma percepção mais aguçada das entrelinhas dos fatos revelaria o real e original culpado.

Quando fomos abordados por aquele profeta-mendigo de turbante chamado Allah Kerin, nem pensamos em rir do insólito, tamanha era a convicção do holograma diante de nós. Ainda nos deixávamos enganar pelo programa ou aplicativo que nos fazia ignorar os mistérios reais e urgentes diante da ressaltação dos mistérios ilusórios e forjados pelas ditas forças da ordem.

Seja como fosse, uma certeza já podíamos ter naqueles dias: nenhuma insurreição poderia partir de criaturas entretidas com preces, pedras, dardos e hologramas. Era uma suspeita que cresceria em nós com o passar dos anos e após todas as cascatas de lágrimas secretas nos quartos escuros e banheiros insalubres. Alguma engenharia deveria ser operada naqueles mentes atrofiadas...

Era óbvio que não poderíamos mais permanecer à espera de um messias libertário. Seria uma desculpa para nos refugiar no medo sedutor. As crianças mudas que se arrastavam pelas ruas tinham um olhar tão terrivelmente suplicante que uma pessoa de bem só conseguiria dormir em paz após afirmar cem vezes diante do espelho a sua própria inocência. Mas quem acreditaria que pudesse existir isso – inocência – numa hora dessas? Talvez fosse alguma culpa ou tormento íntimo que nos estimulava a continuar respirando. Fosse o que fosse, merecíamos um ar muito mais puro. E a utopia que respirávamos tinha agora um quê de além de virtual.