segunda-feira, 26 de abril de 2021

O sustentáculo inominável





...E eis que, certo dia, talvez por pura curiosidade ou franco tédio, o Deus do Sexo resolveu descer de seu pedestal invisível para aventurar-se em alguma situação que lhe pudesse surpreender. Talvez os domínios de outra divindade, ou as exóticas esferas mentais das criaturas mortais.

O que lhe surpreendeu primeiramente foi a própria dificuldade de descer. Afinal, pressupunha-se de um deus as amplas capacidades, os poderes, as dominações; e não exatamente uma maleabilidade para fazer-se menos gigante e mais sutil. Mas foi, todavia, persistente. Determinado no saborear das novas forças, esse ser que já sabia quando ligar e quando desligar o facho das suas luzes.

Sua maior (e necessária) ousadia foi adentrar a dimensão do não desejo. Justamente pela possibilidade de aprender a redefinir o desejo, a partir de uma perspectiva que fosse a mais alta e ampla possível.

Foi assim que, fora de seu meio natural, ele finalmente contemplou o vasto espectro dos desejos das muitas criaturas dos muitos mundos. E descobriu que ele mesmo não era tão grande assim, tão estatuesco, tão colossal como até então se supunha. Os barcos não passariam por entre suas pernas enquanto elas estivessem fechadas. Seu peso não bastaria para lhe sustentar sem haver uma base sólida para além dele.

Algo até então inescrutado estivera sendo seu sustento, por todas as eras; algo que não dizia o próprio nome, mas havia se insinuado ao longo das correntes marítimas adjacentes e dos largos rios do tempo.

Era algo composto; um mosaico de expectativas e sonhos que jamais descansava e jamais retroagia. E, acima de tudo, incontrolável. Não dominável. Simplesmente, algo que não precisava de um deus.

Calou seu ditado, calou seu discurso. Agora ele se tornara o bater de asas da borboleta, o sobrevoo do colibri, as minúsculas pétalas da flor do salgueiro levadas pelo vento, o sorriso do golfinho, a brisa da manhã num setembro austral. Doravante, o Sol não nasceria menos épico ou pictórico do que a Lua se erguendo lenta acima dos mares, uma tocha embevecida de parte dele mesmo, gentil e diligentemente.

Os desejos múltiplos e variáveis constituíam um oceano sem litoral delimitado, um reino sem rei, um infinito livro de cânticos para todas as ocasiões.

Todo ouvidos, todo abertura para todas as belezas: era ele agora a substância do Amor Futuro.








sábado, 24 de abril de 2021

A apoteose do Homem Penetrável





Diante de nossos olhos,
o belo rascunho de uma visão futura
que nem mesmo o antigo poeta
havia conseguido enxergar face a face
como um todo.
 
Ele se aproxima.
O Homem Penetrável,
a glória inviolável que nos redimirá.
 
Sente-se o eco antecipado de sua voz,
seu sussurro e gemido tão característicos,
sua aura de cores.
Talvez o filme das suas dores e prazeres,
seus conceitos nobres de justiça.
 
Desentrelaçamento de cercas farpadas,
desmantelamento de arsenais:
os sinais de sua chegada.
Já os vemos e sabemos
o quê dele herdaremos.
 
A penetrabilidade conferiu-lhe
toda força e sabedoria
para compreender o mecanismo operante
no âmago das situações e relações,
algo que seus extintos líderes
jamais vislumbraram.
 
O ser realmente superior
e autossuperador agora nasce
dos escombros das metrópoles
e da aridez das campinas devastadas;
a acidez dos mares revoltos
pelos mísseis e dejetos
deixados pelo velho e velhusco
homem.
 
As flores mais altas e altivas
que nas canções.
Uma alegria mais desafiadora
que os ódios de todas as revoltas
históricas.
O rugido melodioso
paralisador de gigantes
e de mitos ambulantes.
 
E, quem, sabe,
no menor dos casos,
a salvação da própria honra
de seu gênero.
 
Isso porque o sonhado artífice de mundos
se fez artífice de seu novo nascimento,
moldador de sua nova face e fase
sem subjugação à sanha de subjugar
que foi-lhe conferida por sua ascendência.
Uma heroica recusa
que limparia um planeta inteiro
da peste cinzenta milenarmente emanada
daquelas criaturas impenetráveis
que ditaram todas as normas apequenadoras
de gêneros e características particulares.
 
A abertura na alma
que é fruto, flor e semente;
o espaço de acolhimento
que é dom e presente;
a doçura na força e a força na doçura
que se misturam na poção criogênica
da qual emergirão
as gerações de novos amantes,
amigos, irmãos e colaboradores
na seara da transparente compreensão mútua
tão necessária
ao fenômeno humano.
 
Quem dará ouvidos à profecia?
Quantos desejarão concretizá-la?
Quantos se farão profetas e heróis
e justiceiros da bondade renovada?
Sabida será, porventura,
a hora certa de despir-se,
livrar-se das paredes inúteis,
deixar de lado todas as armaduras variadas,
até mesmo as invisíveis?
Ousaria-se?
 
Ó tu, Homem Penetrável,
nosso futuro presente,
a ti louvamos!
Agracia-nos com a delícia dadivosa
de repousar em tuas entranhas,
ir fundo e mais fundo em teus universos interiores,
deslizar rumo ao já familiar desconhecido
que nos aguardará sem objeções ou obstruções;
e que em ti contemplemos
a luminosidade da apoteose
que jamais seria verdadeiramente tua
caso não pudesse ser tão verdadeiramente
de nós todos!








Octopruma (f.1)




Algarbom. Octopirama la gremon. Sifti tiaris matecruisesul, trocah lupan. Agrofkwamalawn, slock purst polm apwick moph. Cromonausas, hiprim proctom loctomau tratrau paulhaul, la phenomena. Kaka. Oli kaka. Pupi. Oli pupi. Me. Oli me. Me cenapa? Me?? Cenapa loai! Loai... loai... noma trai.

Oltapcock. Matrecreusa lu pinhafol. Trupal to ia fukt lacepoli papai?

Troltfkk...............








sábado, 10 de abril de 2021

Homunculus




Colossal altura e envergadura
da armadura
deste anão que repugna e fascina;
este homúnculo que conquista reinos
em cujos solos
de seu cuspe faz égide.
 
A sofisticação do grunhido,
a tecnologização do cortar a carne,
a romantização da perfuração,
a meta vazia e simplória
do gesto invasivo.
 
Mascarado assassinato das sutilezas
que são, afinal, as únicas moradas
da verdade.
 
Como sorri e gargalha
ante a visão das carcaças
no gládio hodierno;
ele exsuda
como se o líquido viscoso que dele brota
evidenciasse ou justificasse
a alheia derrota.
 
A fêmea é seu satélite,
seu elétron negativado,
seu troféu sem brilho próprio
– ou, em último humílimo caso,
um utensílio animado
removedor de poeira e escarros
que dele são os rastros óbvios.
 
Macaco sem floresta?
Anaconda sem pântano?
Sanguessuga sem charco?
Proclama-se o Rei Animal
de seu zoológico
de tamanho mundial.
Livros e doutrinas
e cátedras civilizatórias
como mero disfarce
da urina demarcadora de territórios.
Sede de sangue quente,
fome de carne tostada a ferro quente,
forja lanças e farpas variadas
como um mosaico pontiagudo
ao redor dele,
sacralizado pelo mito
e pela tradição.
 
Tudo que faz um mundo girar para trás.
 
Para trás, para frente, para os lados
e com todas as marchas e manobras
ele evolui seu veículo rebaixado
igual a uma barata repugnante
para alegria do harém orbitante
que lhe aguarda nas esquinas
do imenso viveiro
das cobaias inconscientes.
Não consigo desver a visão
do mundo que fora esmagado
pelas rodas ardentes,
o medo e a suspeita
de que alguma coisa deixada várias milhas atrás
pudesse ser justamente a salvação
de nossas vidas.
 
Um cano longo e quente
que agora dispara seu foguetório com toda precisão
contra o peito de uma tábua de alvo,
porque talvez não lhe bastem
as brevíssimas ereções
e as antecipadíssimas ejaculações
para que ele considere ter marcado pontos devidamente
nas expectativas alheias
que ele mesmo cria.
 
Ou uma bela farda
quando lhe faltam bons argumentos.
 
Qualquer pretexto
para chutar abaixo uma porta.
 
Quebrar uma garrafa no acostamento.
 
Rasgar mais um hímen.
 
Luto para me libertar desta pele,
me contorço e torço
o caminho dos meus pensamentos
para me sentir limpo,
após reconhecer o quê disto tudo
ainda está impregnado em mim.
As gargalhadas do troglodita
que saíram de minha boca de criança
tão cedo contaminada.
Aquilo que uma vez me agradou,
me seduziu,
me fez gozar
com artificial naturalidade.
 
Minar, corroer, erodir, demolir
de dentro para fora
esta estrutura, este monumento vil,
este ultraje à beleza,
este entrave à sobrevivência da espécie,
este câncer cultural.
 
Não quero ser o único a cantar
o desmoronamento.
Que não sejam só meus os 
pés
a pisotear as cinzas malditas
do longo pesadelo cínico
que tanto arrasou a superfície
de nosso paraíso sufocado.
 
Poder mostrar
o peito nu aos céus
e o sorriso justificado
pelo prazer do valoroso dever.
O Sol sem manchas,
o divino Apolo que se inclina à beleza
revelada por seus raios de luz
magnânima.








Epílogo (últimas palavras de Axphos / antevisão do fim de um mundo)




"Eu escolhi isso. Fui o escolhedor supremo. Não pude determinar, não pude engendrar tudo aquilo que me antecedeu, mas pude tocar o aquilo em frente. Agora sou o autor de uma tragédia que é uma epopeia ao mesmo tempo – nesse caso, algo praticamente inevitável, como respirar quando se está vivo. A dita situação limite. Quando tudo conspira para que algo aconteça. E aconteci.

"Contemplar longamente a ironia (ou cinismo) da civilização que tanto enaltece o amor, e ao mesmo tempo faz tão pouco caso dele e o sufoca por mero capricho.

"Estou ciente de que jamais consegui entrar na pessoa amada; contemplar a paisagem interna daquela alma. Nunca consegui sair de mim e de minha representação mental. É muito mais que aquele velho sonho de abraçar as samambaias do jardim que era meu. Ou tentar reter em minha alma os arbustos dos campos vistos da janela de um veículo. A impossibilidade em questão vai muito mais além: é a impossibilidade de romper com a minha individualidade.

"Então a busca da imersão no amor tornou-se em mim uma obsessão pelo incompreensível e inabarcável. Um mistério que faz todos os deuses parecerem obsoletos.

"Assim, ousei fazer a pergunta proibida, na circunstância em que qualquer pergunta é proibida. Admiti que não sou um deus. Restou a mim o cargo de carregador da tragédia. O que deve rolar, rola; o que deve soprar, sopra; e propiciei ao tempo congelado o descongelamento. Dei uma chance à natureza, e sei que dela perecerei. E retornarei na forma oportuna.

"Agora contemplo os sinais no horizonte do mar; sei muito bem o que se aproxima e se acometerá sobre o nosso mundo. Em corajosa resignação, eu contemplo. Meus olhos ainda brilham, como nunca.

"A natureza, a avalanche, a ressaca do mar, os tufões de todos os tempos: tudo isso eu sou, e não me desculparei."








Octopruma (f.2)




Algarbom.
Octopirama la gremon.
Sifti tiaris matecruisesul,
trocah lupan.
Agrofkwamalawn,
slock purst polm
apwick moph.
Cromonausas, hiprim proctom
loctomau tratrau paulhaul,
la phenomena.
Kaka. Oli kaka.
Pupi. Oli pupi.
Me. Oli me.
Me cenapa? Me??
Cenapa loai!
Loai... loai... noma trai.

Oltapcock.
Matrecreusa lu pinhafol.
Trupal to ia fukt lacepoli papai?

Troltfkk...............








Colapso quântico multidimensional




Qualquer coisa pode acontecer.
 
Os pingos na pia
não serão estancados.
O cometa antes invisível
ameaça invadir nossas janelas.
Lacraias assassinas
ao longo das paredes internas
e o externo tremulando
às nossas vistas.
Talvez dentro dos ouvidos
a premonição do desabamento
das pedras de gelo
nunca profetizadas.
 
Qualquer coisa.
 
Coisas com dentes caninos perfurantes
e tentáculos e gosmas
e olhares repelentes
não repelíveis.
Todos os mitos e fantasias e superstições
agora sólidos e invasivos,
sem a menor sutileza.
 
Me recuso a sair deste roupeiro.
Simplesmente não posso.
As comportas das possibilidades
se escancararam tenebrosamente
e não creio
que alguém estivesse preparado.
Ninguém poderia.
O baque, o estouro, a bomba
da devastação giratória
que se apresenta com a roupagem do absurdo,
e o próprio absurdo tomando o lugar
do antes tão assegurado
e estabelecido.
 
Os guinchos dos morcegos gigantes
podem enlouquecer
quem não consegue bem cobrir os ouvidos.
Justo num dia como hoje...
Quando nem se sabe
que dia é, e nem se sabe
qualquer data.
 
Ninguém vai me tirar daqui.
Não vou deixar.
Me entrego à atividade solitária
de tentar cogitar
o que acontece lá fora.
Sobretudo porque tudo que pode acontecer
acontece, e o que não podia
agora pode
e mata
e estraçalha
e esmigalha
e pulveriza
e esparge
o que nos resta de esperança
terráquea.
 
E tudo se perde
no mesmo vórtice.
Um colapso quântico multidimensional
que desfaz mundos
e faz o tudo e o nada
se equivalerem.
 
Qualquer coisa,
a qualquer momento.
Não há mais regras.
Não há planeta que se sustente
ante o deslocamento violento
da própria base das leis cosmológicas.
 
Haveria alguma lei
para os interiores dos roupeiros?
 
Droga.
Não há mais espaço.
Não há mais dentro e fora
que eu possa discernir.
Há somente na minha mente
uma torneira que pinga
e uma falta de coragem
para ir lá fazê-la estancar.








Sobre as cabeças




Tão adoráveis
em fila ligeiramente ondulada
sob o pátio coberto,
tão despreocupados
em seus assuntos televisivos
e a destreza em se rir
das aparências uns dos outros,
até mesmo dos vestidos e maquiagens
das professoras canastronas,
a vice-diretora matrona,
o vigia-porteiro bonachão
e tudo adornado pelos ecos não tão distantes
dos apitos do professor de educação física
e as onipresentes risadas
em praticamente todas as distâncias.
Como se não houvesse futuro
e o agora fosse sinônimo
de eternidade.
(Ainda estamos lá.)
As meninas sempre com seus segredos
amplamente compartilhados.
Todos os dias algum menino
tentando provar que ele é mais que um menino.
Sempre algum espaço nas agendas
para alguma fruição,
mesmo com tantas tarefas
e ocupações.
(Realmente, milagroso.)
Todos subitamente correndo agora
ao som de duas músicas diferentes misturadas,
como se nem fosse dissonância.
Uma doce campainha
como se nem fosse sirene.
Como se fosse união,
a jovial aglomeração.
 
Mas algo insuspeitado
ameaça cair
sobre as cabeças.