quarta-feira, 25 de abril de 2018

Estupros






Eu sou filho de um estupro.
Você também é.
Todos somos.
Um estupro abençoado
pelo padre,
pelo juiz,
pelos sogros,
pelos padrinhos,
vizinhos
comezinhos.
Um estupro consentido
pela dependência doentia das esposas,
guiadas pelos seus úteros
autoflageladores,
suas vulvas
automutiladoras.
A perpetuação de um reinado,
o ditado de um véu obscuro
que a todos ludibriou perfeitamente
com seu sangrento simulacro
de moralidade
e sociedade.

Como um sonho final e necessário,
vislumbro voando lado a lado
as delimitações, as funções
a as binariedades inevitáveis
de cada indivíduo
plenamente emancipado
desta longamente enaltecida
lama profana. 








domingo, 8 de abril de 2018

A música do caos





As formas das nuvens são sempre abstratas
e você insiste em ver bichinhos.
Os pássaros em seus guinchos de acasalamento
são cantores para você.
As avalanches, as lavas
e os planetas bombardeados por meteoros
são profecias vindas do além
para seu desespero
fingido de fé.

Dormindo de pé em sua tentativa de vigília,
você é engraçado como um duende de jardim
sem jardim e sem graça.

(Como haveria espaço
para alguém que não reserva em si
um mínimo espaço que seja
para o lindo acaso,
a bela imprevisibilidade,
a magnífica eventualidade
e a música do caos?)








Ziguezague do Espírito Incolor





Psicotelecinese relampejante.
Propulsão misteriosa do veículo discoide.
Flamejam as copas das árvores
no horizonte volúvel.
Olhando para trás bruscamente,
vejo as estátuas flutuando em minha direção
– uma situação da qual não se pode acordar.

Os cânticos e os aleluias
vão se somando para nosso enervamento.
Todas as vozes eletronicamente distorcidas,
um coletivo adeus à carne.
Dispersão intencional vagamente humana.
Burburinho que traz a certeza
de que perdi você para sempre.
Ainda que
para sempre ao seu lado.

Certeza infeliz
de que persistirei,
e de tudo sempre lembrarei.
Sem descanso em vista
para o Espírito.

A pedra que rola da ribanceira,
em chamas rola sobre os umbrais
do vilarejo azul:
dentre todas as probabilidades matemáticas
do universo possível,
é justamente ali que me encontro.
Como se fosse absolutamente inevitável.

Meu corpo de luz chora copiosamente
pelo fado de sua imperceptibilidade,
quando esta menos se fazia necessária.
Tudo porque
tudo que eu mais queria
era ser necessário agora!

Mas todo mero contemplador de burburinhos
é inútil. 








terça-feira, 3 de abril de 2018

Os arpões






As cordas de nossos arpões nos estrangularão antes de conseguirmos arrancar à força o mais cruel segredo da natureza. De qualquer forma, não conseguiríamos dormir sob os lamentos e maldições dos animais que sacrificamos ao bem de nossa tão imaculada ciência. Nossa festejada cultura. Nossa abençoada usura.

Em meio à tempestade elétrica, nossas pandorgas são cortadas por projéteis lançados por canhões afixados às amuradas de navios-fantasma flutuando dentro de icebergs-granizo irascíveis e incontroláveis.








“Ich soy Braziliano” (4-7)






(Continuação)


IV

Fazer, fazer, fazer.
A ordem está inscrita no meu DNA.
(Se bobear, no RNA também.)
Fazer, fazer, fazer.
Produzir, extrair, servir
a uma grande fera de tantos olhos e cabeças
que de vez em quando chego até a confundir
uma delas com a minha.
A minha cabeça mesma,
na versão “busto de pedra-sabão”
está sempre sendo feita e refeita,
tanto, que muito provavelmente sente
as dores do fígado de Prometeu
com as cutucadas dos cutelos
e as porradas dos martelos
dos meus alter egos e eus líricos
desgraçados.

Ou mal alimentados.
Excesso de feijão com arroz
e bananas com chiclete.
O melhor sempre vai para a forragem das bestas
ou de certos bichos de estimação
que moram bem longe.

Comer, beber, morrer.
Fazer falta na vida de alguém
do mesmo modo como o alguém
faria falta na minha.
Agir, cair, sair
dos espaços que me abrigam
cada vez que eles começarem a dar
indícios de traição.
Se tudo nesse País das Maravilhas
possui dois lados,
quanto mais não o teria o meu infinito e infinitivo
fazer, fazer, fazer!!!

V

Temer.
Temor.
Sempre chega a hora do espelho,
da obra do espelho,
da obra da obra do espelho
e toda essa já cansativa fractalidade
manjada desde a época da festiva psicodelia
já morta e enterrada.
Sempre houve um tempo,
nessa incomensurável ilhota perdida,
em que cada um de seus habitantes,
passantes, foragidos e parasitas,
fossem eles quem fossem,
tiveram que encarar seus próprios olhos ao contrário.

A hora chegou para mim.
A hora chegou para você.

Mas, sei lá,
ela sempre chega na hora do futebol...
É uma sina...
Talvez o jeito seja juntar tudo
nesse campinho de várzea,
as Terras do Nunca, os Países das Maravilhas
e principalmente os espelhos malucos;
será no mínimo uma divertida Casa da Mãe Joana
esperando por sua autoexplicação.
(Na hora do perigo, basta só chutar para frente,
o que já é tradição.)

VI

Não, não vou ficar eternamente deitado
neste berço.
Vou é carregar junto comigo,
ao longo das vias do espaço cósmico,
a minha arte de fazer berços
sempre diferentes e sem molde pré-definido.
Jorra do meu peito
uma inventividade maníaca,
viscosa e aromática
como a seiva da primeira daquelas
humildes madeiras vermelhas
que fora despedaçada em toras enviadas
ao olho de um grande redemoinho transatlântico.
Transpacífico me vejo
em minha solidão sertaneja,
minha ocasional lassidão
tão necessária ao funcionamento
das engrenagens da vida.
Transamazônico, eu, com estes meus caminhos
que não me levam a lugar algum
além de minha idílica fábrica de caminhos.

“Olhem, pequeninos...
onde a arte leva um homem!...
Miséria e infâmia sem nome... ”

Sacudo a poeira.
A fuligem acima e entre
estes megalitos retangulares gigantescos
não são uma digna opção à lama
e aos inços do meu primevo matagal.
Um mundo sem sujeira e sem obstruções
– me pergunto se sou capaz
de simplesmente imaginar isso.
Preciso de uma urgente faxina,
além da periódica,
em meu mecanismo de extração de imaginação
– deixem fora da crítica
a inocência da fonte!

VII

As fontes dos meus maiores rios
estão alhures...
Nem me pertencem, estas idas-com-o-vento
ancestralidades e reminiscências
tão ambíguas e empoeiradas nos quadros
das paredes das bibliotecas
e repartições públicas execráveis.
Um solo que me escapa
tanto como meus pés dele escapam,
mesmo com toda tentativa de, talvez infantilmente,
sentir um pouco da mítica experiência
de ser raiz.

Sigo em frente nesta ampla plantação,
esta esperança de um cultivo,
uma extração de raízes surpreendentes.
Nem que seja, ao fim e ao cabo,
uma super mega transgenia,
perene híper transmutação conveniente
a seres ultra extra intra
metamórficos.

Ressuscito caleidoscópios psicodélicos
em novas tecnologias
para o êxito da nova exposição
dos meus novos rostos
moldados em bustos hologramáticos interativos.

Depois, largo tudo em boas mãos
e fujo novamente,
anonimamente na infinita estrada
dos saboreáveis empecilhos.

Fluído e maleável à minha própria vontade,
dono de mim mesmo,
mutante, tropical e subtropical
eu vou!


                                                      (2008-2018)







Art by Cícero Brito

“Ich soy Braziliano” (1-3)






I

Ich soy Braziliano, man,
fluído e maleável nos interstícios úmidos das selvas,
escalador de dunas e abridor de mares,
às vezes me afogando de mim mesmo ridiculamente
até enjoar, mas ok...
Porque tenho sempre um jeito de me safar
das encrencas que eu mesmo produzo.
Domino este engenho que herdei,
da casa onde me criei – esta síntese
de todas as maiores contradições conflitantes
que se apaziguam em cima de uma cama.
Sei fazer amor do modo mais caliente
que o sexo dos deuses jamais me ensinou
(posso ensinar a quem se submeter
ao método pragmático...),
e nunca me arrependendo
antes de poder rir do passado.
(Ignorado.)

Segurem minha mão, crianças!
Vamos voar...
Despencar...

Terra incógnita.
“Além-mar.”

É daqui que eu vim, emergindo,
me definindo e redefinindo
ao sabor das mutações do espaço.
Espantoso, exótico
eu vim!

Venho e volto,
e você junto.

Do último lugar onde você esperaria encontrar
a primeira das suas múltiplas realidades ocultas.
A origem primária de todos os seus sonhos e pesadelos
não baseados na vida presente.

Lugar,
aquele poema,
este quase selvagem celestialmente murmurado
pela minha favorita ótica estrangeira
através do nicho luminoso em seu cubículo
de desesperanças formais.

A excitante armadilha de turistas
que certamente compensa a empreitada!
A recompensa? – produza-a.
Muitos já tentaram, mas em vão...
Dou-lhe, doravante, a CHAVE!

Ordem, Progresso e Bunda.

Sim, sei muito bem o que move seus ímpetos revolucionários,
mesmo que você mesmo não saiba.
É o mesmo que também poderia levá-lo
a ignorar ou combater toda e qualquer revolução.
Pertencemos à mesma raça – ninguém poderá negar.
Eu apenas me diferencio pela sincera determinação
do sorriso, oculto por trás
do choro inexplicável.

Ah, você achava que era só “festa”, né?

II

Simplesmente sofro e queimo porque sei demais!
Não desfruto o sabor das frutas tropicais
cuja razão se ser é tão somente
o apaziguar das angústias semanais
daqueles que não se ocupam de preocupar-se
frutificantemente.

Apenas sofro e padeço do peso
da América,
Américas, Europas,
Calixtos e Ganimedes.
O que quer que me orbite,
exerce sobre mim
alguma ambígua influência;
algo que escapa de meu controle.

Há muitas paranoias coloridas
rondando meu acampamento nômade (roto).
Furtiva intenção das gargantas sedentas
para sentir por osmose
o que só eu sou capaz de sentir.

Desde que me ensinaram
que saber e poder coincidem,
estive mergulhando em vórtices de diluição
de mitos musicados,
saltando de negação em negação,
mantido em vida apenas somente pelo fio
da esperança que se me fez caminho.

Caminhantes do mundo,
instituamos novas e fluídas estradas!
Vocês são do meu sangue, sim!
Vocês, que bem sabem que contestação
rima com fruição, e assim respiram.

Não, não respiram.
Novamente falando com fantasmas...
Ainda pensando em “compensação”...
Mas ainda sei quem sou.

III

Brazileño, Capisce?
Corredor de riscos por definição.
Heroico! – com pequenas e esparsas
covardias hilárias.

Je suis... um eterno estrangeiro
na terra de ninguém e de todos.
Mas aqui TODOS são estrangeiros,
embora nunca estranhos.
(Nenhum sangue puramente nativo
sobreviveu a esta lenda criada ontem.)

¿Did you understand?

Mim ser... Apache,
Yanomami, Quíchua,
vocalista de banda de rock de estilo mutável.
Nunca sei em que trilhas
se intrometerão meus trilhos.
Só sigo o rastro do perfume
que aquele sedutor saci
deixou pelos arbustos da minha vida.

Ferida – mas sempre sei rir!
É como escrever poesia,
como voar em melodias:
é sempre um novo amanhecer
depois da melancolia.
(Rimou de novo.)

Seguir em frente
quando nem caminhos à vista houver:
a arte que os Orixás
nos forçaram a aprender,
desde os tempos imemoriais
que obviamente nunca fazemos questão de lembrar.



(Continua)








Art by Ilse Hviid