domingo, 20 de junho de 2021

“Errante” (f.2)




Errante – eternidades em instantes
vêm passar diante dos olhos da solidão encarnada,
assim distante dos arvoredos e pomares mágicos:
a força magnética destas estradas sem fim.

Um sonho cadenciado impeliu este ser
que sabe se despedir deixando sementes
tão suas, que se espalham como pólen de estrelas
que só se revelam à visão há anos-luz daqui.

Etapas e degraus de uma ascensão
à meta impronunciável de minhas motivações.








As velhas melodias




As estrelas
cujas imagens contemplo neste céu
já estão todas mortas.
Cercam-me fantasmas
e memórias do passado.
A luminosidade
das melodias interpretadas
por quem não mais está
 (fisicamenteentre nós.

Respeitosamente
capto essa transmissão,
ciente de que a sobrevivência e a alma
são o próprio transmitido
e nada além disso.

As velhas melodias...
A substância fantasmal do Universo.








O discurso




Êxito da racionalidade e funcionalidade da espécie dominante, aqui discursamos briosos e radiosos por sobre o caos que não nos afetará. Pois somos pináculos de civilidade e
 
estatutos do... estatutos estatutos
 
estatutos do pão de ló. Cremos que por estes meios eps rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr aaaaaaaa ttttt espere epp
 
alguma coisa está fod fd me puxa espera m
 
tudo parte do convívio estabelec
 
avenidas que
 
aven
 
avenida rósea epif
 
avenida rósea epifanie flaticalmente capturados são focados os atriantes horripilares da fecundidade toscana ebifóbica se mentes em corrupção idealizadora melagrialho extrassentido em materialidade extratudo arbóreo porvir.
 
gromuládio mululóideo mal de sapa carteirilha de densi lou mif tanto pegava metuco ama malo tonho caiolívio das tranças dos caminhos.
 
parade golio senocal de arretinos vaegos.
 
guedes mertericas braba ppk
 
dirfiop vvuvuvubn fg hhhhhh ektoektaps bb asasasashj jjjjjjjjj
 
jgoi75rrj9p,,,,,,ffff
 
jjj








Se o ódio pudesse nos reintegrar...




...eu suportaria até o inferno que você me traria. Só para celebrar a memória de cada vício que compartilhamos, tão sem remorso; aqueles dias de inocência paradoxal... Assistiria com olhos de plateia de teatro os seus acessos de ódio. Os excessos de sódio etc. Você odiaria minhas rimas e assim jamais me esqueceria. Porque não nutro mais a esperança de ser amado. Aliás, nem sei se amo você... Isso parece irrelevante agora que a sobrevivência é a prioridade e já descobrimos (das mais dolorosas maneiras possíveis) que o amor não é fator de sobrevivência, como julgavam os velhuscos românticos já exterminados. Tocar nossos corpos (torturados) em frente exige um maior dinamismo, uma nova flexibilidade. Pragmatismo vital.

Quem dera... quem dera num amanhecer futuro, dispersas as fuligens, fumaças e terrores, possa vir a renascer o que fomos obrigados a fazer dormir. E que o renascido não herde de nós essa mágoa, essas cicatrizes abertas na alma. Um novo Sol, menos amarelo e menos óbvio. Porque o óbvio jamais poderia nos redimir; a nós e nossa memória.








Container




Obcecado com a ideia do pecado,
você aprisiona sua virtude
e calcula cada movimento;
mais cadeados para as noites
de lua cheia.

Você não está inteiro.

Preocupado com o certo e o errado,
você separa seus eleitos
e esquece de reservar
um lugar para você
e sua liberdade.

Você não está inteiramente certo
de seu merecimento.

Porque incerto é o sentimento revolvente;
a verdade por trás da boca que mente
é o plano de fundo mais proeminente
ao longo de nossas duas vidas.

Você não está inteiramente perto
de seu preenchimento.

Porque incerto é o sentimento revolvente;
a verdade por trás da boca que mente
é o plano de fundo mais proeminente
ao longo de nossas duas vidas sentidas.








Dois quilos




Pelas ruas alguém soletra,
feito um açougueiro malditoso,
dois quilos de pasárgadas.

Sopa primeva,
esguicho ao charco anexo.

Fenecendo cabecinhas miúdas
destinadas à poda inclemente.

Pelas matas nativas,
os pica-paus em busca
de gaiolas adamantinas.

Perco meu laço
na contemplação
do fenômeno aéreo.








Antes de ser um pássaro...




Antes de ser um pássaro,
eu era um aviador em queda livre
oscilando entre precipícios
e picos pontiagudos.

Antes de ser amante,
eu seduzia espelhos
e me cortava com os cacos resultantes.

Antes de ser torre,
eu me empinava pipa pandorga papagaio
e o chão me parecia inimigo
e uma afronta.

Antes de conhecer
o mel dos teus olhos,
supunha eu que o mistério
não possuísse corpo
e não fosse algo a ser tocado
sem aviso prévio.

Não vivo:
ressarço gozos.
Corda entre picos,
catapulta lunar.








O espaço...*




. .... .........

O espaço é lento, cansativo
e com ares de sem sentido.
O infinito e a imensidão podem ser francamente irritantes
– é compreensível (faz parte).
O pulso dos corações contra o silêncio
(ninguém ouve o seu grito).
Bips eletrônicos.
Movimentos meticulosamente calculados.
Nenhuma trilha sonora agora
além da EXPECTATIVA
(Huston, we have a problem).
Qualquer ímpeto brusco pode vir a ser fatal
(concentre-se, concentre-se)…
IMENSIDÃO – IMENSIDÃO – IMENSIDÃO
inumana.
Sem horizontes, sem chão.
Sem respostas.
Sem explicações.
Nada é claro – apenas ilhas de clarão
(a incalculável distância).

As explicações últimas veladas,
ocultas por sua própria natureza.
Não há nenhum livro aberto,
nenhum cânone, nenhuma exegese caída dos céus
para nos orientar.
Tudo está para ser investigado,
descoberto.
Herdamos do Monolito tão-somente
a inteligência e o senso
(a serem refinados e dirigidos)...
e temos que nos virar com isso.
O TRABALHO É TODO NOSSO.

DURMA, você que se entedia ante o infinito...
Durma eternamente... quando suas funções vitais
não mais se recuperarem.
Nunca mais...

. .... .........


“Este diálogo não tem mais sentido.
Adeus.”







* Escrito como resposta a alguém que chamou o filme 2001: Uma Odisseia No Espaço de lento e sonífero (supondo que isso fosse um defeito).

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Sonho 89 (engenharia obscura)




Numa sala ou ala que remete ao ambiente de um instituto, ou uma usina, ou qualquer instituição científico-tecnológica, me vejo caracterizado como um técnico competente e comprometido. Só não sei com o quê... Presumo que logo me voltará a compreensão.

Abro uma porta para a luminosidade exterior. E o que se abre é um cenário bem amplo, do que poderia ser a construção de uma represa, ou usina hidrelétrica; qualquer obra de engenharia de proporção considerável. Estou num terraço, e diante de mim há um vale ou escavação descomunal, da qual se sobressaem inúmeras parafernálias difíceis de descrever. Por toda parte, perambulam funcionários trajando gravatas, usando capacetes típicos de construção. Praticamente todos são orientais. Não sei identificar se falam em japonês, ou mandarim, ou coreano. Só sei que sou muito respeitado por todos; me tratam como se eu fosse um líder ou autoridade. Sou lisonjeiro às lisonjas, mesmo sem entender o que está acontecendo.

Corte. Perambulo por um cenário um tanto desértico, acompanhado pelos orientais. Eles comentam e apontam para uma enorme formação artificial, com aparência de polvo, que cobre uma montanha. O que parecem tentáculos são na verdade mangueiras / encanamentos / dutos de grossíssimo calibre, como que desabados ao longo das encostas. O que escoaria por eles?

Outro corte. Passeio de jipe pela mesma região. Vejo outros polvos cobrindo montes; aliás, muitos. Passo pelos lados de alguns dos tais dutos. Creio que tenham por volta de quinze metros de diâmetro. Eles parecem que se entrelaçam, e cobrem uma extensão tão vasta da região, que se perdem de vista. Faraônico.

Agora, fica claro que se trata de um sistema de drenagem de tamanho nunca antes sonhado pelos seres humanos de minha época. Qual a finalidade daquilo?

Num piscar de olhos, estou sozinho, levando uma carga nas costas (maior que uma mochila), em meio a um verdadeiro deserto. Não vislumbro alma viva alguma ao redor. Há o som marcante do vento e a apreensão. Ando em frente meio que cambaleante. Percebo que uso óculos especiais que me protegem da poeira. Ando mais um pouco, e noto que uso um tipo de respiradouro acoplado à boca e às narinas. E me valho de um tipo de bengala metálica muito fina, que talvez sirva como sensor sísmico ou hídrico. Curioso cajado.

Até que, finalmente, chego à borda do que pode ser, ao meu ver, um vale ou um canyon de proporções tão inconcebivelmente gigantescas que nem parece coisa deste planeta. Meus olhos não conseguem abarcar tanta vastidão. E tamanha desolação. Porque algo deveria estar ali, no lugar daquela irregular cratera, daquele rasgão de tamanho continental. Não há nada ali de natural penso com amarga certeza. Seria uma blasfêmia à própria Natureza chamar aquilo de paisagem.

Encontro-me, de repente, bem no centro do ponto mais profundo  no âmago desolado de um sonho destruído. Bem diante de meus pés, um pequeno sulco sinuoso, talvez do que outrora fora um córrego ou nascente. Mas nada nasce por ali. Sinto vontade de não pensar em nada. E assim, do nada, no nada começo a chorar. Derrubo minhas cargas e sento-me no chão. Deixo minhas lágrimas regarem o solo, como se tal atitude equivalesse a deixar um vestígio do meu mais belo sonho num mundo futuro  num solo seco do futuro.








quinta-feira, 17 de junho de 2021

Sonho 64 (o menino nordestino / laguna-maravilha)




Sentado num barranco, admiro o bananal. Tudo calmo, simples e tranquilo. Muito sol, e nada de queimação. Flores com muitas cores, e as abelhas sem ferrões. Há colinas, e há um vale que talvez se abra para uma praia; quem sabe, a foz de um rio.
 
Por entre as folhagens, vejo andar um rapaz, um jovem de possivelmente dezoito anos. Traja somente um calção de cor neutra; tem fitas coloridas no pulso esquerdo. Pés descalços. Pele de bronze brilhante. Uma ampla cabeleira encaracolada, bigodinho quase imperceptível, um semi sorriso que sugere mais paz do que mistério. Traços de uma perfeita mestiçagem, posto que a perfeição é mestiça. Latinoamericanidade, por assim dizer.
 
À medida que ele avança pelo bananal, vou seguindo-o com certa cautela. Realmente atraído por aquela presença de tamanha serenidade, aquele brilho humano.
 
Uma praia se abre à nossa vista. Não consigo dizer se um mar, ou um lago, ou um grande rio. Não enxergo a outra margem: o horizonte é nebuloso, matizado. Só percebo a calma das águas, a quase ausência de ondas. O menino lá entra, sempre caminhando, e eu o sigo no mesmo rumo, sem hesitar. É como se eu já conhecesse aquela extensão aquífera, e soubesse da inofensibilidade, do acolhimento.
 
“É esse aí. É ele!” – a voz de minha mãe soa vinda de nenhum lugar aparente. Ela estaria se referindo a mim ou ao menino que agora não mais consigo ver?
 
A neblina das distâncias desaparece, e percebo que estou numa espécie de laguna; a costa é um enorme círculo com um estreito aberto para o mar, ao longe. A água permanece pela minha cintura, apesar de eu me encontrar bem próximo ao centro da formação.
 
Repentinamente, começa a tocar o tema Pepperland, de George Martin (do filme Yellow Submarine). Música deveras maravilhosa! No passo em que a música evolui, coisas belas e exóticas passam a ganhar cena: várias embarcações semelhantes a gôndolas, multicoloridas; sereias, tritões, golfinhos, peixes voadores, rochedos e pilastras encimando dançarinas, navios embandeirados que se aproximam, tobogãs gigantes com ares de montanha-russa, ilhotas com flamingos cor-de-rosa, chafarizes dançantes e até mesmo uma profusão de mergulhadoras-banhistas com coreografias a la Esther Williams... O quê poderia estar faltando, meu Deus?
 
Eis então que, ao som solene de My Love, We Are One, de Ennio Morricone, vem emergir uma formação como que um amálgama de cristais lapidados, e no seu topo vislumbra-se um ser jorrante de luzes, na máxima deslumbrância e exuberância, de cujas costas sobressai um como que misto de cauda de pavão com harpa laser de Jean-Michel Jarre; difícil é saber quantos braços tem o ser, ou se aquelas formas cambiantes podem ser ora asas, ora nadadeiras; se há um só rosto ou vários. A visão total, bem como a compreensão total daquilo, me transcendem e me absorvem.
 
“Ó Grande Deusa!... Ó nossa Deusa!...” – cantam as criaturas muitas. Percebo que agora estou me apoiando numa barbatana dorsal do tamanho de um ser humano; mas o animal incógnito aos meus pés é deveras dócil. Entontecido pelas visões, ainda assim me pergunto, em pensamentos, pelo paradeiro do menino que uma vez busquei. Imagino-o, então, absorvido em tudo ao meu redor; parte de todo aquele festival, aquele carnaval, aquela celebração que é mais um extravasamento de alegria vital do que um típico louvor ou culto a uma divindade...
 
E a música cessa. De repente, estou diante de um pequeno tanque de vidro, cheio de água, com barquinhos de brinquedo flutuando. Algo bem simplório. Olho em volta. Estou numa sala parecida com um laboratório; talvez a ala de algum hospital, ou hospício, ou uma escola, um instituto... Uma fria, fria experiência.








Sonho 12 (o passeio / o golem)




Segue em frente a excursão escolar, num ônibus grande, seletivo, muito confortável. Os adolescentes aquietaram sua balbúrdia; estão mais contemplativos e alguns dormem. Dedico-me a admirar a vista da janela, pois intuo que haja muito a ser visto.
 
Deveras! Agora é um desfile extasiante de belezas naturais, inesperada sucessão de magnificências: lagos azuis, dunas com oásis paradisíacos, bosques repletos de flores e borboletas, montanhas com formas inusitadas, praias com lagunas coralíneas, cataratas espumantes, campos verdejantes... Seria, como dizem, o caso de uma viagem que é mais significativa que a chegada?
 
Então, soma-se ao deslumbramento a obra humana: cidades de beleza arquitetônica estupefaciente; torres suntuosas, as pontes graciosas, os parques coloridos e festivos, chafarizes, balões, arcos, palcos ao céu aberto, enseadas com lanchas a prumo, hotéis resort com suas piscinas exuberantes e os milhões de rostos felizes, em toda parte.
 
Reparo que o som dentro do ônibus é a canção Blue Bayou, de Roy Orbison. Viajo na música, embalado pela melodia, enquanto o veículo segue por uma nova via ladeada por árvores dispostas com rigor quase geométrico.
 
E chega-se, por fim, ao objetivo. Numa região que é, por assim dizer, um tipo de jardim botânico, primor de paisagismo, construções em estilo futurista nos aguardam. Anuncia o guia da viagem: “Chegamos! A Feira de Arte Moderna.”
 
Corte. Estamos perambulando no interior do salão de exposição. As atrações parecem um tanto previsíveis, não muito memoráveis... Até que, ajeitado numa ala em posição de destaque, sobre um pequeno tablado, uma escultura notável desponta. Impossível não se deixar afetar por ela.
 
Um tipo de golem – julgo –, talvez feito de ferro ou outro metal, todo preto; uma figura muito magra que está em posição de lótus. Podia representar, de forma bem estilizada, uma criança faminta, ou até um macaco-aranha sem cauda, considerando o tamanho e a forma esguia. Mas é verdadeiramente horripilante. A boca escancarada, bastante projetada, parecendo querer que o mundo se lançasse dentro dela. Os olhos de um negror brilhante, contrastando com o opaco do corpo coberto de caroços e rugas, protuberâncias de ossos e ferimentos, múltiplas deformidades.
 
Anuncia o cicerone: “O nome desta magnífica obra é A Fome. Uma representação não apenas da fome, mas da miséria e do desespero tão humanos e universais.”
 
Como eu gostaria de jamais ter visto aquilo. Que não se retivesse na mente de um jeito tão implacável, tão indecente. Era algo redutor da importância do resto do mundo.
 
De repente, estou em minha cama. Teria o sonho acabado? Impressão de continuidade.
 
Então, aquilo entra em meu quarto, flutuando, vagarosamente, a um metro do chão, na mesma posição de lótus. A mesma estátua. Não é imaginável uma visão mais assustadora. Com olhos agora luzindo como braseiros, vermelhos, diabólicos, ela se detém diante da janela, em frente à cama, o rosto voltado para mim, ainda flutuando.
 
Não consigo me mover, mas uma estranha força começa a me puxar na direção daquela coisa; a coisa e sua bocarra, seus olhos ardentes, sua paralisia paralisadora.

Uma súbita explosão de luz verde interrompe o horror. O sol já está alto: é o mundo desperto.








quarta-feira, 16 de junho de 2021

Sonho 09 (baleeiros ao crepúsculo)





Talvez com uma idade muito avançada, ancião de barbas brancas, quase um ermitão  assim me sinto, enfurnado e enclausurado nesta singular caverna iluminada em cores quentes, sem entrada e sem saída conhecidas: anos a fio.

Penso tanto que pouco sobra para ser pensado. Mil recursos para lidar com a solidão, os tive. Ainda assim, modifico-me aos poucos, evoluo, aprendo coisas. E o local, igualmente se modifica. Agora não é mais uma caverna típica, mas o interior de um animal gigantesco: uma baleia certamente tão azul quanto os céus, os mares e as tristezas do mundo exterior. Um lar que é uma prisão e um refúgio. Um longo túnel de carne, um abrigo senciente.

Até que, enfim, rasga-se uma abertura na parte superior, acima de mim. Alguém fizera um corte, uma fenda. Encontramos! Ele parece bem, graças a Deus!

Compreendendo a situação, deixo-me subir pela escada de cordas, até meus resgatadores. Puxa, vovô, você ficou um bocado de tempo aí dentro, ein? Pelo menos oito horas. Você foi mesmo um guerreiro.

Oito horas... Espantoso... Sinto como se décadas se passaram. Ou mais: nem consigo lembrar de uma vida anterior. Meus conhecimentos do mundo exterior são puramente referenciais. Não é a memória dos olhos, dos sentidos.

A luz do sol é suave, outrossim me aturdiria a vista. Está ele a se por, sobre o oceano sereno. Na distância, um navio-fábrica para dissecamento de cetáceos; e um pouco mais próximo, a baleeira propriamente dita, o inconfundível canhão na proa. As embarcações são escuras silhuetas, contra a luz alaranjada do poente. Melancolia, é a palavra.

Sim, meu abrigo estava morto. Não sei há quanto tempo, e nem sei como eu não havia percebido o fato.

Meus resgatadores e eu, por fim, saltamos daquela barriga sulcada, virada para cima, do corpanzil flutuante, para a lancha anexa. É... Da próxima vez, cuide onde vai pescar, vovô... Dessa vez você teve sorte. Nossa frota não costuma vir muito por este lado do mundo.

Enquanto nos distanciamos, sinto certa tristeza pela baleia abandonada, morta. Vista de fora e longe, parece muito menor que antes. Outra embarcação acolheria seus restos, friamente, laboriosamente.

Vou rejuvenescendo, devagar, enquanto me desloco na superfície do mar, e a lembrança de quem eu sou retorna.








domingo, 13 de junho de 2021

Poema comestível X




Poemas comestíveis
nunca são o que se espera.
Nunca um sabor familiar
e confortador... Devo admiti-lo,
condoído.
Como pílulas vitamínicas
quando se espera a mesa farta;
como a mesa farta
quando o mais urgente é a pílula.
 
O que está por trás de nossas buscas
e nosso correr em círculos
que, com sorte e empenho,
pode tornar-se espiral.
 
Talvez uma redentora
espiral pulsional.
O surreal tornando-se o último e definitivo
real.
 
Repouso brevemente nesta suspensão
em meio à tensão da viagem máxima.
Eu e todos os meus eus.
Meus teus.
Teus eus.
 
Poemas comestíveis,
o delírio necessário
à manutenção da sanidade esperável
de um filho da civilização.
 
Apenas forneço minhas frutas.
 
Haja luz!


(6 da manhã, sábado, 12 de junho de 2021.)








Poema comestível IX





Saturação.
 
Saturado de verde,
a floresta anseia e busca pelo deserto.
 
Saturado de azul,
o céu sonha e delira pelo rarefeito.
 
Saturado até a alma de tanto amarelo,
uma estrela supernoveia-se sem autopiedade
para envolver-se em estrondosa morte
multicor.
 
O branco dos meus olhos
avermelha-se pelo pranto inconsolável
diante da compartilhada culpa
por esta fome e esta sede
de completude
simultaneamente animalesca e angelical.
 
(Pudera.
Os múltiplos rostos ou focinhos animalescos
dos anjos interventores
não pronunciam algo a nós inteligível.)








Poema comestível VIII





Venho caminhando por corredores
diferentes dos corredores de outrora;
outros ductos, novos túneis,
passagens nunca antes imaginadas
sem saídas e sem entradas
facilmente identificáveis.
Tubos e conexões interpostos,
justapostos, extraordinários
como num pesadelo episódico.
E por falar em sabor,
é justamente o ponto em que não ousei tocar
durante todo o treinamento;
não ousei a pergunta
pelo receio do possível ridículo.
Poderia saber agora?
 
Setor de Nutrição.
Foi até fácil de achar, penso eu,
considerando a enormidade da espaçonave.
E o que procuro é minha única opção de sustento,
no momento.
 
(Corte para o sonho do hibernauta.)
 
Cabeça, tronco e membros.
Cabeça, tronco e meeeeeeeeeeeeeeeeeeee
eeeeeeeeeeeeeeuuudeeeeeeeeeeeuuusdoc
O que está havendo?
Seria este o funil
absorvedor de toda e qualquer luz?
Apego-me às minhas luzinhas
que são minhas esperanças
de discernimento de formas e cores e texturas.
Algo que talvez reste de mim,
algo que me defina;
ao menos uma imagem residual do que fui
ou pensei ser...
Em último caso, um ex-ser
moldado em luz.
Que ela haja...
Haja ela...
Meeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
 
(Corte para o Setor de Nutrição.)
 
Uma vida sem prazer.
Sem açúcar, sem gordura.
Simplesmente o manter-se vivo
para alguma finalidade ou funcionalidade
além de mim mesmo.
Um mecanismo, uma roldana complexa
ambulante, peripateticamente
alheado dos desejos pessoais.
Pílulas. Pílulas para quase tudo
e respostas para quase nada.
Afinal, não ousei ingerir
a feita para a doença da dúvida...
 
Mas é a dúvida, esta sem vergonha,
que me mantém humano.
Em movimento, nos meus próprios termos.
Continuamente infeliz, admito...
Mas ainda eu.
Ainda me tenho!
 
(Corte para o cenário que está na cabeça
de quem lê isto.)
 
Valorize, valorize cada segundo
do que você saboreia.
Em gratidão, e em distribuição
dos sabores.
Revolucione os meios de produção
do saboreável,
coletivize suas descobertas,
planifique o montante dos estilhaços
de felicidade.
Estejam agora as ferramentas
em suas mãos.
 
E quanto a vocês,
montantes de robôs programados
e fantoches manipulados,
escutem este grito! Este apelo!
No dia em que se acabarem
todas as pífias fontes de prazer
e reles motivos para se viver
que lhes foram ofertados ou impostos,
seriam vocês capazes de conceber
uma nova via?
Enxergar além dos véus
e muros e fronteiras e barreiras
e bairrismos absurdos?
 
(O que está havendo, afinal?
O que houve com a fantasia de controle?
Dissolvida, descaracterizada,
terceirizada.
Quão nossas são nossas palavras?
Nossos pensamentos?
 
O Ser Autêntico...
Ó misterioso golem nunca devidamente animizado
para caminhar
e perambular sobre o chão do planeta
que clama por salvação...
 
Visão súbita de insetos esperneantes
instrumentalizados.)
 
Todos agora na grande expectativa
pelo grande engolimento.
Quem diria... sermos nós o alimento...
Criados e recriados
ao longo de milhões de anos
e zilhões de lágrimas vertidas
e suor e sangue e tudo o mais
justamente para sermos lançados num negro buraco
para o bem de algo supremamente desconhecido.
As imagens mentais tão ingênuas
de nossos deuses e crenças 
evanescendo
como fumaça cenográfica.
 
Aliás, tudo que nos é familiar.
 
E outras novas pílulas
para suportar um novo assombro.








segunda-feira, 7 de junho de 2021

Sonho 52 (o alce / a casa no meio do lago à noite)





Algo que só em sonhos me era comum e até rotineiro: ser parte do ambiente apresentado e familiarizado com coisas não vividas no mundo desperto. No caso, a neve e as montanhas, a súbita beleza encontrada no frio. Eu era outro eu. Tentando encontrar algum rumo para, talvez, mais algum outro eu.
 
Na noite com ares de crepuscular, eu subia uma elevação. A neve caía muito fina, quase imperceptível. Mas percebia-se que formava ocasionalmente uma espécie de véu nebuloso sobre as coisas; coisas tais como árvores, rochedos, cercas quebradas, cabanas distantes, estacas e agora um alce que mirava o vale à nossa frente. Ou ao menos poderia ser isso, caso não fosse uma rena ou algo similar, mas o focinho arredondado indicava um alce. Era uma figura bela e imponente, parte tão integrante do cenário quanto eu mesmo.
 
Pensei que, no fim das contas, o vale seria algo digno de uma exploração. Assim, para lá me direcionei. Mais lentamente do que queria, por causa do atrito das botas no solo não muito sólido.
 
Percebi então o som inconfundível de um galopar vindo atrás de mim; voltei a cabeça só para constatar o óbvio: o animal vindo em meu encalço. Tenebrosamente alterado, um bufar que mais parecia fumarolas lhe saindo das narinas.
 
Desci desabaladamente para o vale. Era natural que eu fosse; tudo parecia convergir para lá – era inevitável.
 
Dissipando-se agora qualquer véu nebuloso diante de mim, abriu-se-me à vista a paisagem de um grande lago congelado, de superfície bastante brilhante, cuja margem oposta ia dar em longínquas montanhas. Entremeado de ilhotas, a maioria rochosa. Mas o mais notório agora era o casarão que se erguia bem no meio do lago, no meio de uma ilha. As formas modernas, uma construção de semblante enganosamente frágil. Janelas todas abertas (as portas, seria possível?) e muitas luzes acesas. É vista de perfil, a entrada à esquerda. Um como que ancoradouro hospedando uma pequena embarcação. Resumindo: o calor e o conforto emanavam daquela residência-oásis.
 
Nem me preocupei mais com o que antes me perseguia: tinha total certeza de que ele estava muito longe. Não tive sequer interesse em olhar para trás.
 
Magicamente, um promontório formou-se a partir da margem à minha frente, se alongando em direção ao centro do lago. Segui por ele até o que seria um outro mundo ou um novo sonho.







Art: photo by Paul Twardock

Sonho 50 (o touro / o pequeno lago)





Um bosque europeu, penso eu, ao ver as folhas e flores, as árvores graciosamente espaçadas. Pode-se ver o topo da torre do que talvez seja uma igreja, acima das copas ao longe. O som dos pássaros é de uma delicadeza notável. Aos poucos, meus ouvidos são tomados pela canção Shaking Through, do R.E.M.; o piano e a guitarra se confundindo, se completando mutuamente para a beleza maior. Eu avanço devagar, eu e minha mochila, pelo caminho terroso.
 
Me lembro, de modo vago, que vim a procura de pedras. Saberia quais, quando as encontrasse. Elas teriam, pelo visto, algum efeito místico bem concreto em minha vida.
 
Aquilo que seria um touro, ou um boi, não parece a princípio uma ameaça. Quase paralisado, entre as árvores; é bonachão e de semblante obtuso. Pode estar pastando ou ruminando. Mas, como já estou acostumado com certas recorrências oníricas, me faço apreensivo. Ser perseguido por um animal, em sonhos, é a coisa mais comum, mais familiar ao longo da minha existência paralela.
 
E mais uma vez o sou. A criatura torna-se de repente ameaçadora; até mesmo o tamanho dos chifres havia mudado. A música cessa. Perseguição: corro instintivamente para o declive à direita. (Por alguma razão, tendo a buscar auxílio em regiões baixas, nessas ocasiões.) Uma espécie de tenso dèja-vu.
 
O bosque parece agora uma variação outonal de um cenário natural familiar. “Sim, o lago está lá; sempre esteve e sempre estará.”
 
E de fato, lá se descortinava diante de mim o lago sereníssimo, ovalado, brilhante à luz do sol, cercado de árvores muito belas e encimado por pássaros cantantes. Nele entro, veloz; não como num salto de mergulho, mas a correr. Olho para trás, para o declive por onde desci: lá mesmo o animal se detinha, inerte, olhando em minha direção. Bobo e lerdo novamente. Um típico ruminante sem grandes propósitos.
 
Percebo, surpreso, que já estou no meio do lago. Ele é raso, mas passo a nadar assim mesmo. Em grande tranquilidade, nas mornas águas de um ambiente subitamente primaveril.







Art: photo by Bjorn Beheydt

Sonho 35 (a manada de elefantes)





Um dos ambientes onde passei a infância e a adolescência, tão singular e enorme como ele só, volta a marcar presença. O colégio Pasqualini não tinha um simples pátio, mas uma verdadeira área de preservação ecológica. Muito me fascinava o grande campo de futebol, em grama natural, no tamanho adequado para jogos profissionais; mas que em vez de arquibancadas, era rodeado por árvores de mata nativa e diversificada vegetação.
 
Querendo apenas lá passear, e fora do horário em que o espaço era usado por estudantes ou visitantes, ia eu me aproximando despreocupado dos pinheirais que se faziam guardiões do local. Foi então que vi, ao longe, com muito espanto, a imagem surreal de uma manada de elefantes africanos ocupando o campo. Na dianteira, e junto ao acesso principal, ficavam de guarda dois machos, lado a lado. Aspecto bem austero, orelhas e presas descomunais.
 
Durante um tempo, não me movi. Não avancei, não recuei. Apenas contemplei de longe. Os vigias paquidermes também se mantiveram brevemente estáticos, e eu desconfiava que me fitavam, mesmo eu estando ainda há uns cinquenta metros do campo.
 
Subitamente, começaram a correr em minha direção. Disparei, igualmente, em retroação. Uma perseguição que se iniciou entre os pinheiros, e em seguida sobre a via de paralelepípedos ladeadora das canchas pavimentadas, para enfim nos projetar na longa estrada de terra que cruzava a zona de mata caducifólia, ainda parte do quilométrico terreno.
 
Sem sequer saber se ainda era perseguido, saí da estrada pela descida brusca do barranco ao lado da pequena choupana rústica onde outrora residia o velho jardineiro (que fora, há tempos, ali mesmo assassinado...). Eu sabia que, ao sopé da íngreme descida, existia certa vez um açude, onde se criavam alguns peixes; e que havia já secado (... misteriosamente.).
 
Pisava agora em solo lodoso, ao som de pássaros quero-quero, distantes grunhidos de máquinas de marcenaria e minha própria respiração, até meu despertar.







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Sonho 33 (a fera da floresta)





Totalmente preto. Escuro total. Me sinto até cego, tamanha é a escuridão. Mas sei que me encontro numa floresta: em minha fuga desesperada, esbarro em árvores, arbustos e entrelaçamentos vegetais diversos. Fujo porque sei que, próximo ou ao meu redor, um animal de grandes proporções se locomove e faz sons sinistros, muito semelhantes aos de um urso. E nem tenho senso de direção, não tenho nem caminho. Pode-se dizer que é a própria fera que me tange, empurra para algum lugar com o expediente do medo.
 
Finalmente, o pretume é quebrado por uma pequena luz distante. Imagino de imediato uma morada. Aos atropelos, vou naquela direção; deparo com uma previsível cabana. A porta aberta, como se à minha espera. Entro e fecho a trava interna com a máxima rapidez.
 
Atrás de mim, uma humilde senhora de idade sorri misteriosamente. E diz: “Não precisava trancar... Vamos até lá fora; venha comigo. Seus amigos o esperam.” E eu: “Calma aí. Estou sendo perseguido por um urso enorme. Não tem nada de amigável lá fora! Não faz sentido a gente sair.”
 
Então, com a máxima calma, ela me pega pela mão; com a outra abrindo a porta, me leva até a varanda. De lá, me mostra algo espantoso: uma alcateia inteira está sentada diante de nós, em sentinela. Nada há neles de intimidador, em absoluto. Me diz a mulher: “Eles esperam pelo seu líder máximo. O Senhor da Floresta. Vá até eles. Não tema coisa alguma.”
 
Devagar, vou aos lobos. Eles formam um círculo ao meu redor, diante da cabana, e sentam-se novamente, em grande reverência; os olhares serenos e aprofundadores voltados para mim.
 
Para onde teria fugido o medo?








Sonho 19 (os amuletos de marfim – epílogo)





Caminhando agora pela estrada de terra do que podia ser um parque ou um bosque em região montanhosa, penso na misteriosa serventia dos assim-ditos amuletos de marfim que contemplara no dia anterior. O velho oriental que me vendera o pequeno exemplar que escolhi não soube me explicar direito como usá-lo; lembro-me apenas que deveria ser “inserido” no corpo do usuário no momento oportuno. Não sei de quê jeito, e nem o tal momento...
 
Dos exemplares de amuletos – que levavam nomes como Abraham, Mohammed, Moshe, Budd
ha, Yeshua dentre outros –, fiz a escolha mais óbvia. Era fino e pontiagudo, nove centímetros, provavelmente esculpido num dente de tubarão, com uma espécie de torção espiralada bem no meio, onde ficava um furo. Difícil saber o que aquilo tinha a ver com Jesus Cristo. Será que eu o poderia saber?
 
Súbito devaneio alucinado: eis que o dente já está em mim, sabe-se lá como. Sei disso, pois, claramente, estou em instantâneo estado alterado de consciência – ou, talvez, uma real metamorfose. E era algo diretamente ligado ao bosque.
 
Reduzo-me ao tamanho de um minúsculo inseto voador, à altura de onde estiveram meus olhos. Incrível a sensação do ambiente “crescendo” ao meu redor, durante a rápida transformação: sou como que “sugado” pelo declive ao lado do caminho, mergulhando entre as árvores; elas vêm a mim numa tridimensionalidade delirante. As árvores são como torres gigantescas enquanto eu voo próximo e entre elas, me extasiando na contemplação de todos os pormenores da natureza verdejante. Cascas, ramos, folhas com todas as minúcias. No fim das contas, sou realmente um inseto agora, e isso é uma delícia nunca antes imaginada.
 
Agora não sou mais um inseto, mas um tipo de espírito; sem corpo, sem peso, sem massa. Sobrevoo uma exótica cidade que beira um mar, ensolarada. Prédios com cúpulas arredondadas; todos com duas cores: azul e branco. Mergulho na cidade; entro e saio veloz pelas janelas, atravessando os prédios. Não percebo ninguém vivendo lá... Os interiores e exteriores sempre em azul e branco, com muitas formas que simplesmente não consigo descrever. Tudo cada vez mais indescritível, até o limite do limite de uma mente incapaz de sondar o que está além da mente.







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