domingo, 30 de junho de 2019

Everest







Conseguiste alcançar
o patamar visado desde eras.
Atrás de binóculos,
inspecionou-se os limites da esfera.
E mais: alturas extremas
feitas em pedra ou aço;
trampolinou-se até o espaço.
Mas quem pode contar
as lágrimas e esforços
daqueles que velaram
teus passos?

Conseguiste ser alguém
que multidões definem como um homem.
O que podia se esperar
atrás dos óculos e do renome?
Mas não, pois toda vitória
se faz com amplo esforço
de muitas mãos e mães,
a oculta glória
de pajens e escudeiros
que sustentaram guerreiros
com o pão do dia.

Olhar para o chão movente,
para os viventes
formigantes
por um instante.

Ainda há tempo de olhar
no olhar daqueles que te guardam
e erigiram teu país;
feliz é a partilha da estrada.
Escalar a Pedra Angular
equivale a revisar
a propulsão que dignifica a ação.
Mas as energias da vida
aguardam sempre
que o vento vente
o amor sábio a ti:
em lutas conjuntas
e desafios muitos
da espécie, é o que fortalece
para o ato final,
aguardada redenção.
O cordeiro e o leão,
uma símplice canção.

Olhar para o chão voraz,
aos que estão atrás,
serve para a paz
de elo tenaz.







Photograph by: Elia-Saikaly

Fogo de chão, festa no céu






Fogo de chão,
tremulante é a visão
ao redor da qual somos irmanados,
seja em galpões
ou em clareiras de aconchego,
um nicho sem tempo
para contadores de lendas
alimentadoras
dos guerreiros da paz.
Fogo de chão 
as chispas em ascensão;
pensamentos que volitam
ou que aqui crepitam.
Enquanto, no vasto descampado,
as inumanas lanternas
pairam sobre as colinas e os prados,
ondulam os lagos,
tangem os gados
para fora do abrigo arbóreo,
deixam marcas e códigos.
Nossas vigílias proféticas
vislumbram as faces dos mundos
oriundos da mesma fonte.

Eu observo
a marcha das estrelas
que têm um quê de terrenas
quando olhadas com olhos
de noite serena
guardada no País das Lembranças.
Avante, as tochas
exploram sendas ignotas,
impelem proto-humanos
como a proto-anjos
à maneira que a Eternidade
sempre o fez.
As histórias se recontam
com novos detalhes,
atualizam-se contos de fadas.
Bruxuleante ou altivo
é o brilho.

Fogo de chão.

Brumas vivas sobre os cimos.
Ao chamado, convergimos
ao círculo que abrimos,
comunhão que transluze
o foco no diverso
do plano multiverso
que transmude o verso
em mais luz.
A forma sinuosa
sobe e evolui nas alturas.
Não somos mais os mesmos.
Porque tudo em nós se iluminou
– nada que já não estivesse lá.
Onde quer que pudéssemos estar,
e a bel prazer
nos transformar.

"Eu não vou deixar apagar
a luz dos olhos teus."

Eu sei o que são
as luzes no céu,
os sinais nos campos,
os jorrantes buracos brancos
no centro do centro
dos olhos.









Gleba







Até onde meus pés podem ir
para o caminho ser meu?
Trilhas que possuem histórias
nunca antes narradas
– privilégio de saber.
Sou fragmento desta amplidão
que ajudei a cultivar.
Mesmo sem querer, eu fiz a parte
em cada gesto e riso.

É a gleba que engloba os pontos cardeais,
rosa-dos-ventos cataventando meu andar em frente.
Sem fronteiras, nem barreiras, como sou também.
Espiralo num espasmo, pasmo ante a vista
a perder de vista.

Como triste fico ao ouvir,
destes lábios que beijei,
imposto o que deveria ser
ou um gosto ou vocação
de um simples coração.
Como tristes seríamos nós,
confinados a regiões,
se somos multicultivadorizadamentes
entes.

Minha terra tem Palmeiras e Corinthians,
Gre-nal violeta, Fla-Flu de várzea sem juiz.
A garoa vindo à toa não difere
Oiapoque e Chuí e eu intuí qual a face
de um amplo lar.

Chimarreadas são mais divertidas
sobre palafitas;
entre igarapés e mangues,
um lenço Chimango se agita.
Ecoando-se a acordeona
de uma barca no Amazonas.
Chocolates de Gramado
num teleférico ao Corcovado
são mais doces que um Pão-de-Açúcar,
mas as cucas
não têm Estado.

Até onde seus pés podem ir
para ainda ser você?
Não respondo, mas posso sondar
a resposta do próprio solo.

Minha terra estende redes entre montes,
espalha o pólen das criações dela pelo ar.
Eu escuto de olhos fechados essa voz
feita de muitas vozes, cores cambiantes,
penas de pavão gigante.

Minha terra tem aroma exótico e sutil,
tem o gosto indefinível de um araçá azul.
Sem fronteiras, nem barreiras para as asas-
deltas que pintamos, sinestesia-maresia
de aqui ser.








Intrusão cibercaótica






Confiar em motores de carro
e ventiladores que não fazem ruído
condiciona você ao sossego
que lhe fará ser morto dormindo.
Nunca haviam nos contado
que a tranquilidade é uma
conquista sangrenta
e que o sono viável é só por sedação
e que a arte e a beleza
só vêm à luz quando se rebaixam.
Por que deveria eu confiar
numa natureza que nos permitiu
chegar a este ponto?
Maldita hora em que
resolvi deixar meu asteroide
sem um mapa correto
do universo local.
Infeliz o momento
em que caí neste deserto
onde tantas vezes morri
sem deixar cinzas ou vestígios.

A revolta das máquinas
não as deixou mais felizes.
A queima dos livros
poluiu a estratosfera
de frieza sub-humana.
Tarde demais
aterrissaram os salvadores.

Quimicamente estimulado,
soergui-me então
da câmara de hibernação.
No melhor dos casos,
algumas décadas de sobrevida.









Pequena serenata industrial






Os balcões dos casarões
ouviram um violino desafinar um hino
feito de pedaços de sentimento esparso,
um toque estrangeiro num quadro costumeiro.

Cenas que remanescem tão gentis
na memória coletiva.
Impressões que tive ao chegar aqui.
Pelotas preenche a vista.

Trilhando um seguro projeto de futuro,
aqui vieste pousar, sem hesitar ou pesar.
Pois com tua escolha, evitaste a bolha
que limita os sonhos em horizontes tristonhos.

Determinado e sem esmorecer,
te empenhas em teu projeto.
Respirar esperanças de haver
novos ciclos de progresso.

Engenhos a vapor, velhas novas ao dispor,
outrora cruzando o azul do oceano.
Hoje, as engrenagens rolam segundo imagens
surgidas em tua mente sóbria e sorridente.

São as visões da felicidade,
o moderno evangelho.
Minha menção e homenagem
a este gozo sério.

Estações amenizam saudades
do teu olhar refrigério.
Minha canção chove à tarde
sobre os campos e os prédios.








Nunca mais as andorinhas...






Onde, as andorinhas do Sul?
Milhas, quilômetros, jardas
de paciência, privação e persistência
em direção ao único litoral
capaz de sediar o encontro
com a esperança alada
e a beleza indicada
por todas as intuições
de todos os esperançosos corações
e agora... nada?

As andorinhas.
Eu as via em visões internas,
impressões de bater de asas,
toques de ventos,
incomuns sentimentos.
Nada, porém, equivalente
ao mundo externo.
É no céu que a elas pertence
que deveria eu vê-las.
As verdadeiras.
Nesta praia, nesta latitude
e em nenhum outro ponto.

Perscruto as alturas,
os horizontes
e o que resta das nuvens
do entardecer.
Nítida, sim, era a esperança.
Uma versejada virtualidade.
Um mundo onírico
em que as coisas podiam ser tocadas
e saboreadas.
Projeções,
nada além de projeções.

Do cais,
do promontório,
das areias,
da beirada espumosa mesmo;
seja onde pudesse eu aguardá-las,
certamente lá estive
e me detive, sôfrego
e aturdido
pelo passar dos minutos.
Horas.
Eternidades?

Motores e buzinas
das motocicletas lá atrás.
Eles vieram me procurar,
como esperado –
meus amigos, que nem imaginam
o formato dos meus pensamentos
e o brilho
da minha lágrima silenciosa.

Minha breve despedida
ao lilás do céu
(baço e fugaz lilás).
Dou as costas
e sigo cabisbaixo
ao meu destino.

“Adeus, andorinhas do Sul!...
Lembrem-se de mim,
onde quer que estiverem.
Onde tanto desejo eu
agora e sempre estar...”








Sonho 49 (a casa misteriosa)





Negro contorno alinhado à fileira de árvores em frente ao céu cor de vinho, a casa misteriosa ergue-se isolada ao som de uma música eletrônica experimental ligeiramente sombria. (Precisamente, um medley de duas do Orbital: Otoño e Shadows.) Os que passam pela rua à frente dela, ou pela cidade, parecem não reparar nas mesmas coisas que eu. Apenas eu possuo esta estranha carta na mão, e apenas eu tenho que adivinhar onde entregá-la ou colocá-la. Às vezes me vejo seguindo a pé e às vezes de bicicleta me locomovo nesta busca por algo a se buscar. Mas não sei andar de bicicleta, devo confessar. Aliás, há poucas coisas que sei fazer bem. (Sempre digo: me garanto apenas na salada de maionese e nas poesias. Mas isso quando estou acordado. Quando estou dormindo, não sei dizer exatamente quem está fazendo as refeições e o esparramamento de palavras.)

O homem vestido de preto distribui papéis, podem ser cartazes ou jornais. Apenas as crianças e gente de baixa estatura os apanham. Eu não quero me envolver; mas só olhar, caso me seja permitida a distância. E a carta insiste em jamais sair da minha mão, me impelindo a procurar o destinatário entre os múltiplos cenários que se intercambiam e algumas vezes voltam ao ponto inicial.

A neblina é avermelhada novamente. Os ruídos muitos se confundem e isso não é nada agradável. A casa misteriosa pode estar em qualquer parte e há sempre algo de impenetrável nela. (E em mim também.)







Sonho 41 (queda em direção a Marte)




Não parece daquelas fantasias de viagens interplanetárias deliciosamente aventurescas. Não; trata-se de uma espécie de repuxo vertiginoso; ser-se dominado por uma misteriosa força com a qual nem se consegue dialogar. Simplesmente estar caindo quando a morte é certa e iminente. Eis a sensação.

O planeta Marte é gigantesco, real, sólido, material e absoluto em cada pormenor. O globo alaranjado tão nítido parece estar me sugando; sinto uma pressão em meu corpo todo; meu cérebro se sente espremido e meu coração em taquicardia.

Não tenho invólucros, nenhuma espaçonave ou traje; pelo menos que eu perceba. Só não estou congelado, e ainda respirando, porque a força invisível de Marte me mantém assim. Provavelmente estou completamente nu, mas nem consigo enxergar qualquer parte de meu corpo. Marte é a única coisa a ser vista.

“Eu pensei que seria divertido... pensei que seria divertido...” – me remoo, na dor do desmoronamento de todas as inocentes fantasias de ficção científica. “Eu já deveria saber que a realidade é sempre bem diferente. Eu já tinha sido avisado...” – me lamento no brusco apartar de tudo que reconheço como humano e assimilável. O espaço é a própria solidão.

Caio lentamente em direção à mancha branca de uma zona polar.








Sonho 32 (a clareira)




Deixando para trás a aldeia e as multidões que lá festejam alguma conquista obscura, me empenho na subida desta colina de rocha vulcânica. Saberei o que estou procurando assim que o vir. Apesar da noite e da neblina crescente, tudo me parece favorável ao encontro. Não preciso da mapas: a intuição ainda me é forte o bastante.
 
Agora ainda preciso percorrer a pé alguma parte do platô, pois o centro dele é mais longe do que supus. Mas logo avisto o objetivo.
 
De longe, mais parece um campo para jogos ou qualquer coisa de finalidade esportiva, mas presumo que seja mais um equilátero esta enorme clareira angulosa. E há pedras de vários tamanhos pontuando o solo; pode ser que sirvam justamente para fazer os pisantes irem devagar no lugar.
 
Muito longe atrás de mim, a palavra “prostituta!” é vociferada. Uma voz feminina horrível.
 
Dou de ombros e sigo lentamente em direção ao centro da região retangular, onde se entrevê uma já esperada formação circular. Mais uma vez, isso faz vir à mente um design que remete a um campo de futebol; mas há pedras polidas, arredondadas, nos contornos. Antes de estar lá, já intuo se tratar de algo de finalidade ritualística. “Bonito”, penso, sem muitos julgamentos.
 
Realmente, só pode ser religioso. Mas outras coisas são sugeridas, que se sobrepõem a isto. Alguma relação com UFOs e Stonehenge e sei lá mais o quê.
 
“Onde estão, afinal, os sacerdotes?”, penso, olhando em volta. “Preciso deles”. Mas o que seria uma resposta é tão somente neblina e um tipo de silvo suave.








Excessivamente eu mesmo






Eu sou uma parede,
eu sou um buraco,
eu sou um retrato movente.
Eu sou um robô,
eu sou um modelo
– you know what I mean.
Eu sou um planeta,
sou uma bolha,
sou uma morsa terminal.
Até mesmo um superstar,
numa ceia sem sal.
Enceno o Hair
no auge da minha calvície.
Amo minha bunda
por consideração a toda transitoriedade.
Eterna, colossal compaixão
ao irrepetível e irrecuperável.
Atchim.
Burp.
Hiccup.
Eu te amo.
Meu cachorro louco.







Art by: Kai Theriault

Aquarius






Eles desceram do céu no início da noite,
ninguém sabia se era para o bem ou para o mal.
Como já acontecera em idas eras,
igualmente ninguém sabia qual o propósito daquilo.
Não eram totalmente máquinas,
não eram totalmente carne,
não era absolutamente real
o conceito de realidade de que nos alimentávamos
junto à crosta.

Mas houve uma estranha calma nos mares,
um conforto montanhesco
florestosamente arenítico,
pedregosando pelo espaço aéreo
fogofatuante como a morte deve ser
para as borboletas fazedoras de tufões.

Revira, gira, dissolve
a expectativa lendária;
maltrata, destrata, reergue e dignifica
os fazedores de lendas.
Amontoadas letras nas bibliotecas ruídas
e nosso inteiro passado histórico em microarquivos
de nanocápsulas virais inescrutáveis.

O planeta já não existe mais
no formato familiar aos nossos ancestrais,
mas amamos o som dos tambores
e as gotas das cachoeiras,
porque tudo convive na nostalgia,
o sabor da solene ironia.

Tudo nos é hologramaticamente permitido.
Os filhos do século brincam no pó.

Nossas caravelas
um dia alcançaram terra.
Ninguém sabia
se era para o bem ou para o mal.