quarta-feira, 20 de março de 2024

Deserto zen




Você vem me segurar no ar
de um tipo de apego que não se pode respirar.
Minha aspiração está além.
A visão de um deserto zen.

Os cactos em flor apontam para a lua ocre
antes que a faixa lilás do poente se desfoque.
Arbustos rolantes vêm
brincar de ser alguém

que já aprendeu
a reter o senso da beleza em si.
Me refugio à sombra das rochas de dia
e à noite a fogueira dança.

O tempo se paralisa
durante o beijo das almas fugitivas.
O que foi e o que virá,
o deserto responderá.

A raiz vai lhe ajudar
a se enxergar por dentro.
Apenas se arrisque na imersão
no Ponto Zabriskie do seu coração.

Você vem me segurar no ar
de um tipo de apego que não se pode respirar,
mas a sua redenção já vem:
a unção do deserto zen.









segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O pôr do sol atômico de Diôsefe Macondos




Assim agachado na borda do terraço do edifício, Diôsefe não sabe dizer se ele parece mais uma gárgula, ou um suicida, ou um super-herói estereotipado. Ninguém repara nele ali, de qualquer forma – naturalmente, o suicídio está descartado pela simples falta de um público. Sem impacto social, não faria o menor sentido.
 
Passados tantos anos no implacável questionamento, agora ele nem mais aguenta continuar tentando. Para não ter de pensar em ser, ou não ser, ou parecer, ou desaparecer, ele se analisa em terceira pessoa, como se os pensamentos e os sentimentos se emoldurassem / encaixassem numa objetividade. O sujeito poderia ser o próprio Universo, o das múltiplas criaturas analisadoras. O anti-herói só se deseja objeto.
 
Na cena seguinte, já percebemos que ele está sob efeito de alguma droga ou fármaco. Perambula zumbificadamente pela orla do lago Guaíba dentro de uma esfera mental onde simplesmente não existem seres humanos ou humanoides. Somente ele e a vastidão descompartimentalizada.
 
Realidade. Essa é a primeira, e quiçá a única vez que provara LSD, a única droga que jamais havia provado. Só o que faltava, agora, para se decidir entre os dois lados do portal do desaparecimento.
 
Primeiramente, a noção do tempo se altera. O cenário psíquico é um elo insano entre a Era Industrial vaporosa e um Apocalipse nuclear pós Terceira Guerra. Dourados e sépias incomuns à maioria dos usuários da substância. Criaturas e coisas do passado, incluindo a infância, surgem imiscuídas com a banalidade, sobrepostas e em movimento interativo. Um misto dos espaços e dos tempos. Até mesmo as circunstâncias de seu nascimento, num Uruguai nebuloso dos anos oitenta, agora vistas além da personalidade e da individualidade. Ele se vê dançando todos os ridículos ritmos ocidentais filtrados pela cultura do Sul do Brasil, bem como as tentativas de replicar as novidades do mundinho da pornografia dos anos noventa, ao bel prazer de sua irreprimível pansexualidade. Entrevê detalhes de um corpo másculo – o de seu próprio psicanalista, por quem desenvolvera uma atração selvagem, nada sublimada ou intelectualizada. Algo que não deveria ser tido como ridículo ou absurdo. (Afinal, ninguém ali almejava uma cura para nada...) Fatos da vida, que têm sempre seu valor. Ao mesmo tempo, tudo parece destinado a ser deixado para trás, como toda aquela parte do Universo que sempre fica atrás de nossa nuca. As coisas mergulham continuamente no invisível (de onde elas também surgem).
 
Está agora com metade do corpo dentro da água, sentindo os pedregulhos contra a sola dos pés. Sim, ele tirara os sapatos, porque já planejara nadar. Nadar até o fim do mundo, ou o fim de sua História particular, coisas que talvez coincidissem num dia como hoje (ou tarde, melhor dizendo). O Sol seria alcançado. Finalmente: seria não apenas tocado, mas se mesclaria ao seu adorador. Tomado por um sorridente delírio, Diôsefe ofega e cantarola uma mistura de referências poéticas e musicais, enquanto avança em direção ao globo luminoso envolto no mais vermelho dos horizontes. Era só ele e o pôr do sol – não precisava existir mais nada no mundo.
 
Eis que, de repente, a bolona radiante se expande, ou explode, se transformando num espantoso cogumelo atômico. A explosão definitiva, a aniquilação mais absoluta e traiçoeira.
 
Gritos, gritos ensandecidos; movimento borbulhante frenético no meio de um lago...
 
Mas isso foi apenas durante o tempo necessário para o anti-herói desenvolver a estratégia estocolmista última... Ele deveria somente se entregar, deixar-se levar, celebrar o Fim. Afundar-se no bojo da mais subitamente bela perdição... Uma vez virada a alavanca libidinal da vontade cósmica individualizada.
 
O Pós-Apocalipse, a música do caos, o reverso do som da Criação, única assombrosa nota com quatro pianos simultâneos.
 
Ele jamais havia aprendido a nadar.







Foto: Alfonso Abraham

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O nítido





Debaixo das cobertas,
esperando pelo temporal,
você não sente o deslocamento da superfície,
mas pressente, ao lento transporte,
o emergir das luzes do abismo.
 
O vício dos anjos,
a jovem tristeza sem remissão.
Uma maré cinzenta que se aproxima
para confirmar que sua solicitada solidão inspiradora
não fora concedida,
mais uma vez.
 
O toque dos seres em sonhos é frio.
O calor tão longamente ansiado e cruelmente negado
– uma urgên
cia que nos foge
por mero capricho já tornado tradicional.
 
A consciência e a atenção se transportam
(portal de cristal).
Novo derretimento das estátuas de sal.
Mas insípida é minha expressão,
esperando pelo temporal.
 
Viajamos em trilhas vaporosas;
viajamos, viajamos ao largo da prudência.
Com desprendimento insano,
viajamos na música
da fragilidade do corpo humano.

Você acoplado ao cenário onírico:
oscilante delimitação do amor.
Forma mais claramente detectável ao meu lado:
tudo lhe darei;
tudo, tudo de meu mundo
tão logo o seu contorno
esteja claro e nítido diante de mim.
 
Faixas de sombra e luz
transluzem os corpos já conhecidos.
Ângulo expositivo.
Estas formas, expandidas são mais belas
que o brado das hordas
além das suas janelas.
 
Tanto migramos de consciência em consciência.
Como não nos perderíamos?
Ó meu único referencial...
 
Ouço sua risada através da bruma,
tento alcançá-lo,
mas sei que em breve despertarei.
despertarei.
despertarei.







Como era antes




Havia barcos de papel,
e os cometas pelo céu,
havia sonho e pão de mel
partilháveis.

Havia luzes no Natal,
havia um porto e um litoral
e um palácio de cristal
inquebrável.

Por um instante, lembrei
como era antes de acontecer
essa discórdia sem misericórdia
em meu país.
Era um tempo mais simples,
que a lembrança redime.

Como era antes.
Como era antes.

Mas não consigo reconhecer
o bairro que me viu crescer
e a cidade ao entardecer
me ignora.

Por um instante, lembrei
como era antes de aparecer
a longa noite a nós desafiante.
E o que restou
são os laços humildes
entre os poucos valentes
que resistem.

Mas talvez chegue a nossa vez
de escrever a nova História,
registrar memórias
e superar esse tempo limite
de compreender que existe
algo a se construir.

Como era antes.
Como era antes.







quarta-feira, 20 de abril de 2022

Tromba




A fraqueza da imaginação
e o império da sensação
e a ditadura da impressão
reduzindo as estaturas
de nossas torres Eiffels
tediosas.
O espaço cósmico agora repartido
em pedacinhos irritantes
para melhor ingestão e digestão
de um deus mimado
e amuado.
 
A coruja empalhada
no centro da mesa de jantar.
(Você não a vê.)
 
Sinto o ardor
desta atmosfera rarefeita
em minha via nasal.
Capítulos da novela reexibida à exaustão
no globo ocular anuviado.
Cupinzeiro imperial.
 
Visualizado – eu – assim entretido
com as amarras do cabrestante
do barco pesqueiro
que jamais me pertencerá,
aguardo a chegada
da vislumbrada torre de água serpentina
e o espatifamento
redentor.








quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Diôsefe Macondos, o andarilho cyberpunk




– Compro ouro.
– Compro cabelo.
– Olha os churros!
– E aí, bonitão. Vamo fazê um programa?

Pareço com o quê? Isso realmente me preocupa. Porque me parece, afinal, inútil o preocupar-se com o tal do “ser”. Já me acostumei com meu constante não ser… Algo óbvio demais, enjoativo… Com o quê devo parecer?

– Pastel de carne com suco, promoção.

Ah ah ahgora sim, consegui! Pelo menos no dia de hoje… consegui: sair de casa com um visual tal que concilie o sentir-se por dentro e o causar alguma impressão externa de parecença. É estranho, eu sei, mas é fato que um corte de cabelo significativo e uma calça customizada dizem alguma coisa, e dizem mais alto e claro do que minha voz conseguiria dizer. E os acessórios, os detalhes minuciosamente inspirados nos figurinos cinematográficos que mais falam sobre a minha vida urrarão ao mundo toda a angústia do ser-não-ser que sempre passa por nós nas calçadas (e calçadões) dessa cidade insandecidamente decadente que nem sequer sei dizer se é um exemplo de típica capital de um estado brasileiro ou uma cosmópolis sul-americana de caráter indeterminado e indefinível. (Porto Alegre e eu somos o mesmo Absurdo.)

Panfleto caído no chão: “Extraordinária médium e vidente Mãe Naná, traz seu Amor na velocidade da luz.” De Megafone: “Incrível torra-torra no Balaião da Moda!”

Se tudo é redutível a sexo, meu onanismo matinal não esvaziou em nada este ultra desejo dinamítico mítico de tão selvático: todas as minhas loucuras convergem para minha ereção caminhante enquanto caminhando vou sem rumo. É óbvio que acabarei me enfiando em alguma coisa, e muito provavelmente algo ou alguém se enfiará em mim. (Preparei meus fundilhos e minha pistola sexual para a eventualidade-necessidade.)

Letreiro: “Menos preço é no Atacadão-Sacolão do Paulão.” Cartaz no poste: “Jesus breve voltará.”

Ainda sob o efeito idiossincrático da soma de todos os livros lidos e abandonados, vou tocando para frente os meus vinte e três anos de massa corporal e vaporosidade aural. O mundo me penetra e eu o penetro igualmente sem pudor.

– Uns trocadinho aí, tio?
– Vai uma graxa aí nos coturno, tio?

O tonel-fogueira concentra os mendigos – luzes das janelas do trem aéreo voam ao longe  cores em escala Pantone no céu crepuscular – vapores saídos das portas que cortam o breu – concentração surreal de sujeiras nas sarjetas – gotas de gasolina formam nebulosas coloridas em poças – pernas magras e nuas saídas de um casacão – cheiro de álcool e cânhamo barato – cães magros movidos pelo medo – luz se acende no banheiro do mais alto edifício – estou chorando e rindo, ninguém mais me vê… Entro e saio do bar: as estrelas ao menos continuam lá para ser apreciadas.

Cartaz numa parede: “Conferencista espírita José Maria convida você para o grande simpósio temático: as delícias da castidade.”







quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Caramelo IV





Efervescido pertencimento deste doméstico fomento,
Diletantemente se espraia para além da bolha caduca
E infecta até mesmo os escravos-senhores que educa
Ao químico estímulo, um ultramarino investimento.

Sabor morango, sabor guaraná, um aroma promissor
Da felicidade embalável, moeda-produto estocável
Nos bancos de sangue e plasma de nações tão subjugáveis
Em troca de atrativos fáceis de se deglutir ao fervor

Da angústia familiar às crianças que não crescerão,
Falhados gigantes sedados de açúcar em seus corações:
A filosofia da encefálica atrofia haverá de engrenar?

Pois lesos seguimos da cor e do atrativo assimilados,
Sorvendo, da rotina, o aditivo mental ofertado
Da senda-vivenda sabor morango, sabor guaraná.








terça-feira, 23 de novembro de 2021

Painel em oito quadros (lamentos)




8. Miséria vertical

Nas estreitas vielas de uma comunidade
que é perene faroeste sem heróis à vista,
não pode haver espetáculo algum na rotina
de meu inútil desviar da boina e do capuz.

7. Gravata amarrotada

Considerável meu andar, mas sapatos precisam durar;
a arte de ter impecáveis, em mil entrevistas,
o traje e o falar, tendo na mente o tormento
e a casa às escuras – a ameaça do cárcere.

6. Área de serviço

Uma prisão santificada, este lar e esta função
a mim conferida, sem opção de saída;
eterna fêmea útil, utensílio ambulante,
serviçal e amante, reprodutora e troféu silente.

5. Macas da clínica

Se sou agora o refém de uma dependência dita química;
sou também o joguete das infrutíferas terapêuticas,
torno-me, aos poucos, o que eles enxergam,
os olhares fixos/fixadores da grande repulsa.

4. Postes da rua noturna

Em esquinas e calçadas, fui rainha sem reinado;
sou o gosto do pecado, mas dele nunca desfruto,
ainda mais em minha doença, da clientela tangente,
em meu cansaço maquiado, essa mágoa acobertada.

3. Chão de fábrica

Ao ritmo dos relógios alheios me ajusto,
mesmo ao custo do sabor perdido dos dias
passados todos em pavilhões e setores,
posto que proletária em si jamais será a vida…

2. Paisagem desolada

Antes dos vaivéns e dos andares em círculos
dos tamancos sobre todo o agreste ardor,
era impopular o meu cantar do Sertão,
a solidão de um coração com seus calos.

1. Ruas da Grande Cidade

Um sujo pé, porque o mundo é poeira;
mendigando em semáforos, porque livre
sou dentro dos limites da jaula-cidade;
criança de negro futuro, o filho do Nada.

***

Frase (gritada) no centro do painel (em torno
da qual orbitam os quadros):

CORAÇÃO-SOL!








sábado, 13 de novembro de 2021

O limite (f.1)




Fenda  abismo  caverna 
garganta  buraco de minhoca espacial 
poços  minas  fossa
das Ilhas Marianas  vacuum 
canos e tubos e mangueiras sorvedouras –
sumidouro cloacal  redemoinho
sem fundo
como esta busca incansável
de uma meta incerta
e continuamente redefinida.

Formigamento:
situação-limite.
Situações-limite sobre os ombros
do indivíduo individido.

(Por quê alguém colocaria
num carrinho de supermercado
um livro?
Como este?
Como qualquer um?
Quando nos falta o pão
e o Pai nossos,
pode-se pensar em ler
ou sequer em escrever
o que quer que seja?)

A busca prossegue
pelos caminhos tortuosos.
Ei-los todos aqui.

Iluminados
pela luz sem nome.







quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Depois do fim




Mas o fim…,
como de praxe,
chega sempre de forma imprevista,
por maiores que sejam os esforços
dos melhores autores
de ficção científica utopista.

Todas as flores destinadas a murchar
cumprem seu papel.
A única glória, a única honra genuína
residindo na substituibilidade.
O imaterial como mera repercussão
sobre a matéria remanescente.
(A guardada imagem de você
desenhada pelos elementos.)

As brincadeiras extrairão sentido
de si próprias,
mais uma vez, e sempre.
Mesmo com todos os acidentes
e colateralidades.
A garantia de uma coisa plenamente usufruível
nos fins dos tempos
ou nos inícios
dos mistérios abissais.

(Éramos sábios
e não sabíamos.)