quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Uma breve ascensão




Leveza de pluma,
o caminho final
de um condenado festivo.
Festas decoradas e radiantes
de flashes de escuridão
saídos dos vértices de um polígono maldito.
Páginas revolucionárias
de uma HQ de fundo de quintal,
a forma de vida ignorada.
As rodas seguem passando sobre o pavimento
tremulando sobre as almas encolhidas.
Encolhidos vamos
dentro da engrenagem mecânica
do tamanho de uma fragata de guerra
ou nave espacial carcomida de ferrugem
sobreposta aos acenos de adeus
das mulheres vestidas de preto reluzente
da cena vindoura.
O ferro não identificado
batendo irritantemente contra os trilhos
cada vez que passam os vagões
de carne inumana.
Os pequeninos sempre chamando de fumaça
os vapores das respirações humanas
e as fumaças verdadeiras
ainda decorando de rosada ironia
os céus que nos amanhecem.
 
Amanheço horizontal e rolante
por cima do oceano dissonante.
Cada pequena coisa
retornando à sua posição óbvia
e eu no lamento
pelo eterno perdido
nunca sequer contemplado.








Nirvanas I




Você ainda pode ouvir os passos na calçada,
as risadas das crianças que um dia envelhecerão,
o sangue chiando dentro da sua cabeça
e toda uma maquinaria complexa
que lhe faz chorar
sem identificar o motivo imediato
e um renovado gosto de vergonha
muito particular.
Os carros e aviões que passam velozes
não consolam as dores da humanidade
e há ainda uma dor à parte do resto dela
– esta que veste o sorriso mais brilhante
e que nas profundezas
da grande decepção da espécie
é o grito mudo de um torturado inerte.
Quem dera fosse apenas um personagem...
Um eu-lírico palerma qualquer...
 
Você canta, toca, escreve
mais uma canção
e se pergunta pelo porquê disto tudo.
Como muitos antes de você.
Quem ou o quê estará no controle
disso que se chama você?
Você realmente existe?
 
Edifícios novos desabam.
Poeira se levanta.
Um dia você não mais levantará
– talvez uma profecia
dos fantasmas que lhe antecederam
e abriram caminho para você
por entre as velhas ruínas.
 
E se alguém batesse à porta?
E se o telefone tocasse?
E se uma nova força oculta
ganhasse o controle?
Quantos existem
dentro desta imagem caminhante?
 
E o caminhar para.
Todos saberão da notícia.
Todos comentarão
(sobre o que não entendem bulhufas).
E os sons e os silêncios persistirão
espargidos como cinzas
sobre os rios e os peixes.








Congele a imagem por tempo indeterminado




Escuto, lá fora,
na rua em frente à janela do meu quarto,
um som guinchante
acompanhado de um arfante.
Talvez sutil para outros,
mas não para mim.
Podia ser um andarilho puxando uma carroça,
mesmo a esta hora da noite.
Podia ser outra coisa.
Mas não quero me mover sequer para verificar.
Espero o findar dos ruídos
e talvez dos mistérios noturnos todos.
 
Onde estaria ele agora?
 
Vagando, fugindo, cantando.
E sempre escapando do nosso alcance.
Sempre muito adiante ou muito atrás.
Se escondendo.
 
Congele agora a imagem por tempo indeterminado.
Observe atentamente o contorno paralisado.
Uma ilusão de controle do tempo
e, até mesmo, do que o cantor fará
(dentre o que já foi feito).
A música não importa agora
– o silêncio é até substancial.
Aliás, o mais substancial:
uma revelação.
 
Onde estaria ele agora?
Não sabemos sequer onde estamos.
Tudo foge ao nosso redor,
como paisagens da janela de um veículo.
Cruzando a noite,
se aprofundando na escuridão engolidora.
 
Vagando, fugindo, cantando.
 
E...








A andança no bairro




Andávamos lado a lado na calçada. A calçada era ampla o suficiente para nossa desenvoltura. Nossa desenvoltura era o caminhar exploratório missionário, como sinal de respeito ao conjunto visível de casas, praças e tudo o mais que constitui um bairro. Um bairro só nosso, uma espécie de continuidade de nossos corpos e almas, uma sincronia perfeita de intenções.

Havia, apesar dessa familiaridade, toda uma carga de mistério – inclusive quanto às intenções e quanto à extensão do corpo composto. A exploração seguiria.

(A palavra “ilusão!” fora gritada em meu ouvido esquerdo. Mas não sei por quem. Os amigos ao lado pareceram não ter ouvido nada. Felizmente, não perceberam meu susto.)

O mais incrível, agora: todo o perigo, ou risco, ou drama, era como que encenado. Como não havia mais perigo algum neste universo – sequer a morte –, a única forma de não se entediar, e para fazer a vida valer a pena, era criar aventuras que pressupunham as ideias de risco e vilania. Brincar de guerra, de violência, de crime e traição. Um enorme teatro vivido, saboreado pelas tardes que caíam.

E quando a tarde caía, os amigos que caminham nos bairros achavam algum recanto de mistério e imaginativo perigo. Para nós, agora, era a floresta que circundava a cidade. Fazíamos de conta que não a conhecíamos, que nela havia tesouros e corpos enterrados, animais exóticos etc. Mergulhamos naquele anoitecer.

O rapaz cavocava ou ajuntava algo do chão. Os demais (e eu) contemplávamos a estranhamente alaranjada sobra de horizonte. O matiz esfumaçado tremulante que nenhum de nós havia plasmado conscientemente.

O desejo do fim não possuía as mesmas cores da espera de um início.








domingo, 19 de janeiro de 2020

Mega conspiração





Rêmoras assistem, sem paixão,
um novo frenesi dos tubarões,
pra ser meu o remorso.

Serpentes marinhas longe do mar,
chupacabras sem ter a quem chupar,
pra ser meu o remorso.

Vampiros aliens da orla de Plutão
fugiram da Área 51 de Viamão,
pra ser meu o remorso.

Morcegos frugívoros
condenados a sugar, pela vida,
o sangue coagulado
da minha jugular maldita,
pra ser meu o remorso.









“Errante”





Errante.
Eternidades em instantes
vêm passar diante dos olhos
daquele que anda a pensar
que a estrada
é a única certeza dada
aos que vão buscar ao longe
respostas que o vento tange,
sem pausar.

Intenso, o céu
é um cristalino lençol de bênçãos,
e a chuva afaga a mente
outrora turva de tensões.
Ao tardar esta partida,
quase amargou-se-me a razão.
O horizonte não mais queria
atrás dos montes se ocultar.

Etapas e degraus
da vital escalada ao centro regente
de meus movimentos.

Errando, vejo emergir de mim,
assim como uma ilha de memórias
num oceano de um planeta longínquo,
a inquieta razão
que me define e faz viver.

Levo aonde eu for, comigo,
vinda do recôndito do que sou,
a única coisa que chamo de país
depois daquele que se desfez.

“Errante”.









segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Sangue, suor e lágrimas





Sangue, suor e lágrimas,
condição terráquea.

O silêncio das bibliotecas
pouco se diferencia
da trilha easy listening
do cochilo de um magnata
em sua ilha.

Sangue, suor e lágrimas,
condição terráquea.

Sua filosofia se esforça
para se encaixar
nas normas ABNT,
enquanto a minha se contorce
e se desdobra
para que eu possa sobreviver.

Sangue, suor e lágrimas,
condição terráquea.

Mas apesar de tudo,
eu ainda posso sonhar
com os campos de morangos
que a gente possa plantar,
os campos de morangos
que a gente mesmo plante,
os campos de morangos
que a gente mesmo colha
até se fartar.

Sua rebuscada prosa
talvez lhe garanta
um novo prêmio literário,
mas num desafio de trovas,
perde para este que canta,
o poeta operário.

Você não precisa ser
um metalúrgico para saber
do lado sólido da vida,
nem cultivar feridas;
ou descrever com precisão
cirúrgica a visão
de um universo ideal
nunca vivenciado como tal,
porque
sangue, suor e lágrimas
é o que está diante das suas córneas.
Sangue, suor e lágrimas
sustentam sua paz inglória.

Mas apesar de tudo,
eu ainda posso sonhar
com os campos de morangos
que a gente possa plantar,
os campos de morangos
que a gente mesmo plante,
os campos de morangos
que a gente mesmo colha
até se fartar.










Homenagem ao meu amigo imaginário





Neste que é o meu momento mais solitário,
homenageio o meu amigo imaginário.
Com quem mais preciso conversar agora.
Os olhos que quero contemplar nesta hora.

Se eu falar de amor, ele sabe os 3 tipos;
se eu mencionar um autor, ele conhece o livro.
E conhece também as mesmas lendas e mitos,
até os que finjo que acredito.

E caminhamos nas mesmas alamedas,
admitimos ter os mesmos medos...
Eu sei que alguém sempre me ouve.
Alguém me ouve, perto ou longe.

Ele fala de ufologia, de parapsicologia;
até dos mistérios absurdos da criptozoologia.
Ele também consegue alternar na playlist
Ramones e Pink Floyd, e vai
de Billie Jean a Paranoid.

Nossos silêncios são oculta telepatia,
nossas visões preenchem os vazios...
Eu sei que alguém sempre me ouve.
Perto ou longe, alguém me ouve.

Ele se joga no sofá de pés para o ar,
compartilha a pipoca e os Cheetos,
conhece todos os filmes antigos,
os filósofos esquisitos,
e as HQs de Alan Moore e os mangás
que ninguém entendeu,
só ele e eu.

Aquele que eu já conhecia desde bem pequeno,
e à mil por hora no gira-gira, mantinha-se sereno;
e em minha caxumba, me trouxe o vinil
do Juninho Bill, e comigo ouviu.

Um dia este diamante gigante
se espatifará e se fragmentará
em milhões de rostos felizes,
a longa espera de uma vida.
Mas, por enquanto,
eu sei que alguém me ouve.
Alguém que me ouve
neste exato instante.

...e não gostamos de super-heróis,
a menos que sejam
nós.








domingo, 5 de janeiro de 2020

Maluquete (você diz)





Eu sou maluquete, você diz.
Mas sou realista ao meu modo.
Eu só consigo suportar o que se diz real
cultivando um tipo de beleza,
que é muito pessoal,
mas que posso compartilhar.

Eu vou andando em trilhas,
deixando milhas de saudades do que vi
em olhos que falavam mais do que palavras
de como se ignorava a vontade de amar
sem se controlar,
o impulso vital.

Eu vi os céus se abrirem no estio,
e o destino dos rios;
vivi o tempo do mais terno rocio,
quando a abelha zumbiu
sobre a flor que se abriu
e a criança sorriu.

Eu sou maluquete, você diz.
Mas seria exagero dizer que sou feliz.
Nem penso tanto na minha felicidade,
enquanto alguns de meus irmãos
nem sabem da irmandade,
acham fatalidade em cada relação.

Mas eu vi o elo entre os mil tons de cor,
e da vida o fulgor.
De mim e de você, vejo as emanações
dos desejos guardiões
das puras sensações
para o bem da Expressão.

(A realidade profunda
deixa-se acessar.
A senha do acesso é:
“espinhos e rosas,
verso e prosa – ............”.)

Eu vi os céus se abrirem no estio,
e o destino dos rios;
vivi o tempo do terno rocio,
e a abelha zumbiu
sobre a flor que se abriu
e a criança sorriu.

Eu vi...








Daniel Azulay





Eu vim ao mundo
nascido do pincel mágico
de Daniel Azulay,
autorrevelação.
Colori meu mundo
com meus trinta e seis lápis
Johann Faber Multicolor,
aos seis.
Heliotrópios e berilos
em profusão –
tons de um recanto interno
que o tornam eterno.

O Sol e a Lua
sempre do mesmo tamanho aparente,
em cada desenho.
O que realmente importa da vida
sempre se sobressai,
que nem Daniel Azulay.

Tudo que se sobressai,
que nem Daniel Azulay.

Que nem Daniel Azulay.
Que nem Daniel Azulay.








Lago azul*





Triste y preocupado estoy,
tan solo cuando me voy
alejándome de mi amor
en lago azul.

Trabajando sin descansar,
cuando pienso lo qué es amar,
esperando mi amor escuchar
en lago azul.

Un día llegaré otra vez a ver
mi lago azul.
Con cariño ver a quien amo yo
en mi lago azul.
Ver las lanchas como mariposas,
otra vez al despertar.
Cuando sale el sol,
mi corazón quiere cantar.

Voy a ver mi amor otra vez.
Yo solo nunca seré.
Tan contento yo estaré
en lago azul.

Un día llegaré otra vez a ver
mi lago azul.
Con cariño ver a quien amo yo
en mi lago azul.
Mi amorcito a mi lado estás.
Luna de plata, agua de cristal.
Yo podré olvidar
el cruel dolor que me hace llorar.

Y contento estaré,
como en um sueño,
en mi lago azul.








* Original de Roy Orbison, sob o título “Blue bayou”. Autores: Roy Orbison / Joe Melson
Adaptação em espanhol por Gilbert RonstadtTiberius L. S. Lobo.

Art by: Kathy Schumacher