quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

A árvore





Eu sou a árvore
que frutifica na hora certa.
O horto já contido
em um grão de terra.
Ninguém além de mim
pode me entender
e eu nem preciso me entender
para ser quem sou.

Eu sou a correnteza
fluindo sobre as algas.
Eu sou a curva da estrada
já abandonada.
Já não me preocupo
se existo ou não.
Somos personagens
de um sonho de Adão.

As cercas que me dividiam estão caídas
e cobertas de musgo.
As uvas que jamais serão colhidas
me perfumam.

Vinde a mim todos que sofrem
pelo que entorpece:
eu tenho as flores e as frutas
que vos adormecem.
O gérmen das novas criações
está a salvo
numa dimensão compacta.

A tempestade sobre o campo.
A dança dos relâmpagos.
Contemplação sem sangue
e sem paixão.

Eu sou o cogumelo
da pós-humanidade.
Passo ao largo
do peso da Eternidade.








segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Dentro de você







A harmonia musical do Universo se encarnou,
fez-se sólida e maleável e então se apresentou.
Dentro de você enxerguei a luz,
nela que banhei meu coração nu.

Pois os dias que esperei pelo instante foram mais
prolongados pela distância; a potência dos meus ais
alcançou o céu. Fiz o meu papel
que nasci pra ser dentro de você.

Meu destino que escolhi,
meu anseio de invadir este espaço
e merecer ser
dentro de você.

Corredores de estrelas, ecos de amor ancestral;
câmera subjetiva veloz num bosque surreal;
dentro de você, dentro de você
quero persistir e jamais partir.

As planícies do seu corpo quente devo percorrer.
Posso saltar nestes precipícios de doce prazer.
Ao anoitecer, me refugiar
em meu novo lar dentro de você.

Meu destino que escolhi,
meu anseio de invadir este espaço
e merecer ser
dentro de você.

E quanto mais fundo avançar para o fim
da jornada além do reino de um rei carmesim,
além dos portais do delírio atemporal
e da feiticeira verde em enlevo sensorial:

quero adormecer dentro de você,
sentir pulsar seu coração.
Querendo ou não, tudo ao redor é moldura
para a aventura onírica compartilhada.

A harmonia musical do Universo se encarnou,
fez-se sólida e maleável e então se apresentou.
Dentro de você enxerguei a luz,
nela que banhei meu coração nu.










domingo, 2 de dezembro de 2018

A coisa que dá medo





Em minha tenra juventude,
na minha mais terna atitude,
eu colecionava revistas
como Fangoria, Gorezone
e os pôsteres dos filmes
e eu sabia que os monstros
eram feitos de massinha,
stop motion, animatronix,
practical effects
e nada era sério,
como o olho saltante
de Henrietta Knowby,
como caretas protéticas,
hilários esquartejamentos.

A gente sabia
que ao terminar o dia,
as sombras da noite suburbana
só trariam Legião Urbana no violão
e os mosquitos.
Fitas pra rebobinar.

Mas durante todo tempo,
iam se criando secretamente
coisas obscuras, rastejantes, repelentes,
incubadas nas casas e nas mentes,
que nenhum dos velhos monstros
poderia superar,
ou mesmo igualar.
E os pesadelos de outrora
viraram um museu mimoso
de um tempo saudoso.

A menininha do corredor
não soube digerir a dor
e a menina do poço
não soube lidar com o desgosto.
Os zumbis esfomeados
encurralaram os descerebrados
e os palhaços assassinos
já não atraem os meninos mais.

E com lógica crua,
o horror ganhou as ruas,
as mesas dos churrascos,
glorificando carrascos,
vestiu-se nas crianças
em novos passos de dança,
em megafones, púlpitos,
em repartições públicas,
ambientes de trabalho,
toda invasiva tralha
televisiva, discursiva,
interativa, abusiva,
engolidora como uma bolha açucarada
para mimados sociopatas,
alimentados pelo alarido
de um mundo decaído.

E para nos consolar,
logo acima de nós
brilham ofuscantes
cavalheirescos e galantes vampiros
sob a luz do sol.

A menininha do corredor
não soube digerir a dor
e a menina do poço
não soube lidar com o desgosto.
Os zumbis esfomeados
encurralaram os descerebrados
e os palhaços assassinos
já não atraem os meninos mais.








Estátuas de sal





O mar excedeu a borda
– imensidão incontida –
e eu transbordaria
na luz do meio-dia
só para ser uma sombra de descanso
e eu transcenderia
minha forma primitiva
num ser irradiador de vida.
As multidões que estão em mim
esperam por meu sim.

A vida ensina a pescar
e o mar ensina a navegar
e eu mergulharia
na fonte.
Contemplação das barbatanas
na arrebentação.
Essa empatia me diz:
eu merecia este arpão.

Agradeço a obra
e o tempo que sobra
em silêncio tal
que estátuas de sal
dissolvem-se em nós.

Lá vão eles a correr,
os garotos que fomos um dia.
As dunas mudam de posição
antes do amanhecer.

O amar excedeu a borda
que há tempos fora traçada
e eu verteria
um mar...









Art by: AuldBlue

Demasiadamente brasileiro






Se o seu sertanejo é um caubói Marlboro,
se o seu gaúcho é um latifundiário gordo,
se o seu patriotismo é uma camiseta CBF,
se a sua indignação nunca atinge os chefes
do esquema todo, mas apenas os rotos,
remendados e fáceis de linchar,

você é brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.
Brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.

Pois nas estradas onde seus pneus cantam,
aos litorais que as placas apontam,
todos convergem para ver o espetáculo
das maiores banalidades do século
e você está atento, antenado, excitado
pelo gosto compartilhado.

Você é brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.
Brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.

Você criou as leis que vão mandar em mim.
Quê cérebro oculto planejou assim?

(Ele confunde Moraes Moreira com Alceu Valença,
Bruna Lombardi com Maitê Proença
e calça Nike made in China.
Ele comprou The Wall só pela música do helicóptero,
canta as novinhas pra provar que é hétero
e diz que chora só de raiva.

Assim ele é confundível
com a massa sofrível,
diluído na “ola” da arquibancada,
depois depreda um trem por nada,
diz que a mãe dele é tudo
mas joga toda vergonha do mundo
nas costas da coitada.)

Soltando rojão por qualquer coisa,
ludibriando eternamente sua esposa,
ocupando as vagas dos paralíticos,
idolatrando estúpidos políticos,
permanece nos bares até tarde
porque acha que alcoolismo tem seu charme,
enriquece ainda mais o contrabando
com a justificativa de que ninguém é santo;
foi você que apoiou a milícia
porque não viu distinção entre ela e a polícia.
Você só tem olhos para o vermelho e o azul.
Você quis separar o Sul.

Você é brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.
Brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.
Você é brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.
Brasileiro demais, brasileiro demais
e humano de menos.

Você criou as leis que vão mandar em mim.
Quê cérebro oculto planejou assim?








sábado, 24 de novembro de 2018

Cultive seu oásis*





Fui viajar sem direção,
fazer valer a intuição.
Jamais me perderei
na terra do desprezo,
jamais nos perderemos
em nossa sincronia.

Ontem andei rumo ao horizonte:
fui encontrar alguém que se esconde. (Onde?)
Nessa antiga armadilha
planeja-se a insurreição.
A nossa utopia
é o ar que respiramos.

Eu vejo os pontos cardeais
a as energias naturais
que agora invadem minha mente
num lampejo.
Eu sinto a paz que ressurgiu,
miragem sólida que uniu
em si o campo e a cidade
num oásis.

Quando o dia chegar, eu sei,
iremos nos reencontrar, eu sei
que em você saborearei
a mais intensa sensação.
A fé natural que se perdeu,
a vida real que se esqueceu,
a comemoração de um jubileu
de direcionada paixão.

Eu vejo o tempo abalar
a estrutura milenar
e quem dirá que a justiça
não se faz?
Desengaiole o rouxinol!
A cor do mar mesclado ao sol
é a encontrada eternidade 
o oásis nosso.







*Coautor: Arthur Rimbaud


Art by: Maria Poniatowski

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O lado raro





Explosões, megatons em aroma jasmim.
Dentro em mim, luz astral em verde-capim.
Ele desce espectral sobre a abóbada
das nações, sutil como a Grande Abóbora.

Mira o lado raro, o lado raro do existir.
Mira o lado raro, o lado raro do existir.

Conheci este ser moldado em prazer,
metamorfo voraz por me fazer crer
que o país inundado ainda verá a cor
da nova canção austral que soube se impor.

Mundo de campos verdes e prédios cinza a desabar.
Revelador vislumbre cumpre o dever ao me transportar.
Mira o lado raro, o lado raro do existir.
Mira o lado raro, aguça o faro para sentir.

Viva este chuveiro! Todas as gotas!
Nosso batismo sempre à mão.
Viva este banheiro que purifica
o lado raro da afeição!

Duto transdimensional.

(Brisado, brisado... o astronauta siderado
sobrevoa a Caatinga e o Cerrado.)

Aprendi, transcrevi esta página
na frequência sonora análoga.
O futuro do amor é tudo que sou.
O E.T. dos Pampas foi quem me ensinou.

Sonhos são virtualhas das tropicálias em dispersão.
Subtropicalmente, desenho a doce subversão.
Mira o raro lado, cruzando a nado este atol.
Visa o raso lago doce-amaro do girassol.

Sente este luzeiro abençoado
que vivifica as células.
Nosso candeeiro do lado raro
– e num disparo, libélulas.

A viagem não tem fim.









domingo, 18 de novembro de 2018

Os reprodutores




Sementes de mim encontram o fim
de um túnel mais fabulosamente adequado
para a transmissão da informação
que garante a ignição do aparelho do Estado.

Mas era um delírio: me esbaldei.
Era só um sonho e quando acordei,
eu tinha casa, filho e mulher que não amei.

Estrelas no céu, dores a granel,
incontáveis cabeças vão rolando no estrado
da masmorra da paz distorcida e sagaz
na arte de me convencer a ser seu aliado.

Era um delírio: me esbaldei.
Era só um sonho e quando acordei,
eu tinha casa, filho e mulher que não amei.
Tinha casa, filho e mulher que não amei.

Teorias vão, teorias vêm
e ainda se diz amém ao trono do Império Galáctico.
Novas gerações, velhos ideais
e você pede mais do entretenimento pragmático.

Mas era só delírio: me esbaldei.
Era só um sonho e quando acordei,
eu tinha casa, filho e mulher que não amei.
Tinha casa, filho e mulher que não amei.
Tinha casa, filho e mulher que não amei.
Tinha casa, filho e mulher que não amei.

(A ideia consegue convencer,
consegue ludibriar,
consegue tirar o que quer de nós
antes mesmo de sabermos
que existimos e respiramos.
E isso é o que sobra
e se arrasta pelo continente:
o contingente da desesperança,
a geração da ignorância,
alimentada pelo lixo virtual,
abortada na latrina da América.)








quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A beleza de ser quem você é





Emergir do caos primordial (deus de açúcar e sal).
Se alçar da treva ancestral (DEVA OM).
Ah-ah-ah, movimento ascendente (madrigalcosteira).
Ah-ah-ah, motivante pensamento (da beira).

Terra e mar, o fogo e o vendaval (um conluio lunar),
uma revolução sem igual (VITRIOL)
ah-ah-ah, redemoinhando em você (madrugadores);
ah-ah-ah, espiralante êxtase (fulgores).

Você viu um navio atracar
na selva tropical
do fundo do seu quintal.
Você fez multidões entoarem
desdém aos brasões:
a beleza de ser você (a beleza canta alada sobre a estrada).
Ah-ah-ah, beleza selvagem bem vinda (certeza mais linda)!

Pteranodontes cantarão (hierofantes, não),
cachalotes acasalarão (espermatozodiacaldeirão)
junto ao cais dos amores sem estação (memorial xamânico).
Mais pautas aos cantores (nirvanicantorias)!

Vou levar, ao voar,
manuais de como desbravar
os sinais da glória alheia.
Perfumar este ar,
merecer este amanhecer.
A beleza de ser você (a beleza releva que eu jamais fiz um gol).
Ah-ah-ah, beleza selvagem cintila (leveza-godzilla)!

Alimente o sonho definido e preciso
com féculas de realidade.

Você viu um navio atracar
na selva tropical
do fundo do seu quintal.
Você fez multidões entoarem
desdém aos brasões.
A beleza de ser você (a beleza canta alada sobre a estrada).
Ah-ah-ah, beleza selvagem (silvas).

Ah, a beleza de ser você (aperolado som).
Ah, a beleza de ser (as pérolas)...
Ah, a beleza de ser quem você é (aperolado som).
Ah, beleza que jamais finda (a vinda).










segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Milhões de esqueletos






Quando você faz seus discursos,
ou quando clama a um deus velho e surdo,
todas as vítimas não suspeitadas
das lâminas das adagas
das vomitadas palavras
são os milhões de esqueletos
debaixo de seus pés.

E quando você ergue suas bandeiras,
sejam elas verdeamarelistas ou vermelhas,
todas as causas que você nunca reivindicou,
jamais se interessou,
ou nem sequer imaginou
são os milhões de esqueletos
debaixo de seus pés.

E quando celebramos a vitória
do que fora reescrito na História,
nossos condomínios paradisíacos
ladeiam as vias do
higienismo maníaco
sobre os milhões de esqueletos
debaixo de seus pés.








quarta-feira, 25 de abril de 2018

Estupros






Eu sou filho de um estupro.
Você também é.
Todos somos.
Um estupro abençoado
pelo padre,
pelo juiz,
pelos sogros,
pelos padrinhos,
vizinhos
comezinhos.
Um estupro consentido
pela dependência doentia das esposas,
guiadas pelos seus úteros
autoflageladores,
suas vulvas
automutiladoras.
A perpetuação de um reinado,
o ditado de um véu obscuro
que a todos ludibriou perfeitamente
com seu sangrento simulacro
de moralidade
e sociedade.

Como um sonho final e necessário,
vislumbro voando lado a lado
as delimitações, as funções
a as binariedades inevitáveis
de cada indivíduo
plenamente emancipado
desta longamente enaltecida
lama profana.