segunda-feira, 10 de maio de 2021

“Linchem o elefante!”




Passando ia a mala, à vista de todos;
E o cofre, o cheque, o envelope e a cueca
Que tal qual meia para o Noel, repleta
Ia de doces comíveis só por poucos.
 
Mas gritava a turba, em ódio vibrante:
“Linchem o elefante! Linchem o elefante!”
Em ódio vibrante:
“Linchem o elefante!”
 
Passando entre bramidos, hurras e acenos
Vai o profissional do discurso hábil,
Talvez por tão fácil ser um termo obsceno
O excitador do coletivo nervo débil.
 
Multidões arfavam, em paixão confiante:
“Linchem o elefante! Linchem o elefante!”
Arfavam, confiantes:
“Linchem o elefante!”
 
O Ladrão e o Monstro, em conflito na arena,
Trocam experiências em devastação.
Bem próximo a eles, no enfoque da cena:
Os ilusionistas da informação.
 
E um público clama, no show inebriante:
“Linchem o elefante! Linchem o elefante!”
Clamor inebriante:
“Linchem o elefante!”
 
Uns micos que mugem, cardumes de lobos,
Com dispositivos mais espertos que eles,
Conectados, chegam a eleger seus memes:
Cabras-cegas tornam-se à vista dos roubos.
 
E a massa, que rusga, o faz desafiante:
“Linchem o elefante! Linchem o elefante!”
Rusga, desafiante:
“Linchem o elefante!”
 
Brilham palácios de glórias cretinas;
Luzem sorrisos de escravizadores
Cujas botas seguem polidas por línguas
De idólatras saudosos das velhas dores.
 
As hordas, num brado, o tom trovejante:
“Linchem o elefante! Linchem o elefante!”
Brado trovejante:
“Linchem o elefante!”
 
Rinham os templos contra as alegrias.
Famílias abusam de seus pequenos
Mais do que o resto do mundo o faria:
Cultivados jardins dos ódios extremos.
 
Um povo, uníssono, a voz querelante:
“Linchem o elefante! Linchem o elefante!”
Uno, querelante:
“Linchem o elefante!”
 
Os tipos mais ordinários têm asseclas
Que pululam, fervilham, moldam rotinas
De dar, aos sedentos, pragas e chacinas,
E aos burocratas, rentáveis sonecas.
 
A demografia, eis que exulta, triunfante:
“Está morto o elefante! Está morto o elefante!”
Exulta, em triunfo e indene:
“Morto! Morto está ele!”








Sonho 10 (resumo explicativo)




Cidades se sobrepõem,
convivem paralelas.
Umas dentro das outras,
conectadas por portais.
Não tenho capacidade de saber
se isso é compatível com alguma lei física (desconhecida).
Criaturas podem estar passeando pela minha cozinha
sem sequer perceber minha cozinha:
são planos interseccionados,
por assim dizer.
Eu passo por dentro de criaturas várias
sem saber.
E, quando eventualmente consigo observar o panorama
de modo mais amplo,
compreendo que não existirão palavras no mundo
capazes de descrever a complexidade
do design das cidades.








sábado, 8 de maio de 2021

“Nós” (desajuste planetário esquizoide)




Estas ruas não nos pertencem.
Estes lares, estes estabelecimentos,
nada disso nos pertence.
Este planeta é uma zombaria
sobre aqueles que jamais pediram para aqui nascer.
 
Nenhum lugar ao sol para chamar de nosso,
nenhum lar seguro
numa civilização cujo único objetivo
é derramar nosso sangue.
 
Não reconhecemos mais os sinais,
os símbolos, as metáforas,
as inumeráveis regras que se derramam
sobre nossos corpos.
Sem dúvida, é o que se denomina
colapso.
 
O colapso da assimilação
e da adaptação.
 
Um mundo explodindo sobre nós,
naturalização e banalização de horrores.
Somos obrigados a conviver com a rotina circundante
dentro ou fora de nossos distritos.
 
Mas uma só coisa é bem clara e indiscutível:
não somos daqui.
Não importa mais se somos da geração dos já naturalizados
ou daquela que primeiramente colonizou este globo.
Até mesmo nossos descendentes carregarão o fardo
da eterna estrangeirização
e do perene estranhamento.
 
Os proscritos,
os desajustados,
os acabrunhados,
a bizarria esquiva e furtiva
na chuva metropolitana.
 
Você já olhou fundo no fundo de nossos olhos?
No centro negro deles?
Aposto que não.
Não teria a audácia.
O ódio e o medo que sempre andaram fundidos
e confundidos nas suas psicologias
e psicopatologias
afugentariam quaisquer tentativas de aproximação.
 
A distância entre nós é maior até
do que aquela entre nossos mundos originários.
Mesmo em eventual contato corporal.
 
Somos os rastejamentos,
as repugnâncias de sangue frio,
as aberrações moles
e as duras realidades
sempre imiscuídas nas rotinas estabelecidas.
 
Nenhum espaço que seja “sideral”,
que seja ideal para um mínimo
de entendimento interpessoal.
Ninguém, afinal, suportaria encarar o rosto
da eterna estranheza cósmica.
Um lar sem lareira,
um recanto sem aconchego
– quem iria querer chegar perto?
Ousar o toque?
Ou até mesmo a ideia de uma intimidade?
 
Quem somos nós, afinal, para vocês?
Para os olhos juízes
que apenas nos vislumbram de relance
e se apressam no cruel veredito?
Como podem esperar
que tenhamos sequer a capacidade
de acatar suas normas, religiões, tradições, mitos?
Como ousam esperar
que respeitemos suas bandeiras e fronteiras?
Que entoemos seus hinos de morticínio?
 
Ah, então é este o ponto...
Eu já devia desconfiar.
 
Alguém sempre se sentindo ameaçado,
seja de qual lado se encontrar.
Uma rotunda rotina, novamente.
 
Mas, por que ainda estamos aqui? Afinal?
 
Perenemente esquivos
a qualquer normalização.
Qualquer banal classificação.
Ainda assim:
somos.
 
Os enigmas que caminham ao seu lado.







COMPLEMENTO:




segunda-feira, 3 de maio de 2021

O vermelho





"Veracidade" das "versões"...
"Autoridade" das "opiniões"...
"Legitimidade" das "interpretações"...
 
Pausa.
 
As sensações são algo em si,
e sempre verdadeiras.
Parte-se delas, porventura?
Você está realmente dentro da carne
do sofrimento alheio?
 
Espaço interno.
Viaje nisso.
Envolto nas cavernas de carne,
túneis vivos
e moventes.
Microscopize-se (ainda mais).
Mergulhe no organismo-universo
e veja com seus novos olhos. 
O que você nunca antes quis
ver.
 
Completamente mergulhado
no mais profundo vermelho.
Imantado, arraigado, identificado até
com o âmago do universo:
todas as respostas
encontradas na total imersão.
 
(A linguagem da revelação
ainda será a questão debatida
ao longo das eras
e dos sofrimentos periódicos
das muitas gerações.)








O sonhado





Partiu o viajante,
apenas porque o gosto de um lar
não mais conseguiu sentir.
Talvez além da Lua e dos astros
sem fases e sem eclipses;
além das estrelas
que nem sequer piscam
à nossa visão.
 
Os sonhos...
 
Mas os sonhos, por sua vez,
remetiam a um passado infantil,
sempre e sempre;
tal como o trenozinho
de Charles Foster Kane
ou aquilo que você mesmo
lembrou agora.
 
Aquilo que jamais poderá morrer,
mesmo que todo e qualquer resquício
de seus ossos
já se tenha volatilizado
na derradeira expansão solar.
 
Aquilo que está no centro,
eixo e coração
do que você insiste inutilmente em tentar esquecer
que se trata justamente
do que você é.
 
Em qualquer lugar,
ou sob quaisquer continuadas metamorfoses
de suas superfícies e roupagens,
louvado seja e será
o eternamente sonhado.








Meu querido espelho bruto...




Meu querido espelho bruto,
Meu gemido dissoluto,
Teu gingar a passo enxuto,
Teu olhar de anjo puto
 
Abre um nicho necessário
Para as contradições várias,
E nesta de que és usuário
Faço minha paz hilária.
 
Então corro o belo risco
De prender-me em teu aprisco,
Pois não sou menos arisco
Que as delícias que belisco.
 
Como inofensivos somos,
Nos permitimos o bônus
Do desfrute dos assomos
Das frutas que são o ônus
 
Dos estudantes da vida –
Teu arroto é uma cantiga,
E teu peido é que me avisa,
Como das tardes a brisa,
 
Que teu beijo é recompensa
E teu riso é renascença,
Nossa pele é luz intensa
E a alegria, minha crença.








Encaixes




Seria arte ou decadência?
Vício ou destreza?
Como todo este instinto indefinível
poderia encontrar agora
uma segura válvula de escape
ou moldura ou rótulo
ou nomenclatura
para mostrar um rosto apreciável
ao mundo?
 
Aonde depositar?
Como colocar?
Qual momento e qual cenário
seriam compatíveis?
 
Como como?
 
Há um rio que corre ígneo,
um vulcão que se derrama,
um beijo que não se completa
e um amor que se espalha pelo ar
a se perder de vista.
 
Meu corpo
ser tão indigno do seu
não me permite funcionar.