quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O ventríloquo perfeito





Eu sou o ventríloquo perfeito,
de uma raça perfeita de
tomates falantes.

Um perfeito cáqui
nos palcos dos teatros escolares
que me garantiram o êxito
em minha infância prodigiosa.

Hoje murcho
de prazeres ligeiros,
acumulados durante uma vida
sabugosa de visconde.

Hálito artificioso,
trabalhoso ofício entre os lábios
que me querem sugar.
Vendendo minha arte aos tomistas-aristotelistas teleológicos
que tudo veem do alto e minúsculo.

Ai como sou certinho às vezes.

Ai como passo de fininho entre os estrondos
das trombetas wagnerianas eternamente presunçosas
de terem supostamente derrubado a muralha que ruí
com meu dedinho.

E entre os ufos ainda faz-se a dúvida acerca
da origem (poética) daquela incomensurável
supernova cor de laranja.







Essa é para você:





(O despertar das águas subterrâneas
sacode tronco e ramos.
O prenúncio do estrondo nebuloso
enche-nos os pulmões de adocicado prazer.)

................................................

Þ  Sensores e sonares,
radares que vasculham o céu da cidade
em busca da esperança individualizada
denominada você.
Rádio, televisão, impressos em geral
e o clamor da multidão de crentes ajoelhados
numa busca metafísica por você.
Girândolas multicores explodem de paixão,
sinos badalam ensandecidos entre bramidos
de virtualizada gozo a espera de um concreto
desfrutar de inebriante imersão na grande luz –
você!
O deleite integral que preenche o universo,
o êxtase místico que justifica delírios
sensoriais e extrassensoriais de devoção
à esta síntese de simples perfeição
entendida por você.

E você, ainda atado à auto-escravidão
de reconhecer o rosto no espelho
como seu único aspecto.
E pensar que, só por esta mera imagem,
poetas e cantores já anseiam e deliram,
homens, mulheres e crianças se atordoam
deliciosa e desesperadoramente
pelo anseio do mergulho!

Mas a alguém estão reservados o privilégio
e a missão.

Eis aqui, pois, o Poeta da Presença,
na posse da chave e da tocha,
da coragem de enveredar pelos seus túneis
para enfim encontrar,
lá onde os fúteis românticos jamais procurariam,
envoltos pelo cegante torpor dos tempos,
a amplidão luminosa e iluminante
do seu pleno ser!








Veículo





      Desperta um desejo
interno, concreto, a cores
– borracha quente.
      Firmeza animal,
exuberância a ser tocada
– borracha transpira.

      Apertar, distender,
      desvendar você.
      Sentir o que sente
      quem faz acender
a chama do óbvio que me alimenta,
a chama que pode ferir e curar.

      Desperta um desejo
de ver e cheirar e enfiar,
soltar e prender;
      liso e rijo,
finito e imenso de dor e deleite
– a tua estrutura.

      Apertar, distender,
      desvendar você.
      Sentir o que sente
      quem faz acender
a chama do óbvio que me alimenta,
a chama que pode amar e odiar.

O sol, a água e a saúde,
a sagrada estupidez.
Força e coragem – pelo prazer;
      tanta sutileza e tanto poder,
      tanta humildade e tanto brio;
      moldados sobre o magma
das paixões ardentes
      por trás da flor a se abrir.

      Apertar, distender,
      desvendar você.
      Sentir o que sente
      quem faz acender e acontecer.

      Apertar, distender,
      desvendar você.
      Sentir o que sente
      quem faz acender
a chama do óbvio que me alimenta,
a chama que pode amar e odiar
      inofensivamente...

      A fome do corpo ergueu
      o amor que jamais se perdeu.
Veículo firme de luta e paz;
      este desejo tão meu
      e aquele deleite tão seu...








quarta-feira, 30 de agosto de 2017

vislumbres





uma verde esquizofrenia explode
milhões de elevadores eclodem
novelos infinitos que quando estendidos
expõem a verdade por ninguém escrita
O
saltimbancos esperneiam junto ao tanque
que transborda o conteúdo anil
lebres de abril
calmarias e bonanças e demais sinônimos de
alterados estados de percepção
aliam-se aos náufragos do desespero ocidental
OUSE   M
correm as corredeiras
voam as vassouras encantadas
segue em marcha a multidão dos lemingues suicidas
e nada podemos fazer para aliviar mais
nossas ambíguas consciências compadecidas
O
selas para inóspitas cavalgaduras
campos de batalha arenosos
entre catedrais futuristas incendiadas
esculturas vivas de amianto
perseguindo os pequenos protomamíferos
deslocados de sua era
ligeiramente menos conturbada
OU
preces em línguas mortas
maldições em esperanto-dialeto
marcas-fantasia diluidoras
de modernos aquecimentos
para noites carentes de afeto
penetrante
penetrado
pairam sobre as cabeças uma nuvem de expectativas
ninguém virá nos salvar
destas noites mal dormidas
de tantas ameaçadoras perspectivas
de dilacerações mecanizadas
conduzidas
O
esporos voláteis dirigidos
plasma tentacular passional
mecanismos ludibriadores de consolo televisivo
jardins suspensos de fúteis sumidades
caldos generativos
para futuras celebrações genocidas
novos códigos de bem-viver
em meio às brumas de uma espantosa
falta de renovação geoestacionária
OU
colírios ardentes
sob desfocantes lentes acrílicas
O
perdidos para sempre
na dimensão satírica
O S           C
ardendo dementes
na união nuclear imposta
O  E
eternamente
O
OUSE ME CALAR








Visões de um fim próximo






Visões de um fim próximo.
Altas chamas e devastação,
chuva ácida e vento destruidor,
ondas gigantescas ocasionadas
por vulcões submarinos,
fendas que engolem edifícios
e eu esperando você há 2 horas
debaixo de uma marquise.








As vítimas





A natureza prega peças
e caímos.
A natureza prega peças
e caímos.

Cenários urbanos e rurais,
paisagens serranas e litorâneas
não encobrem a paixão
e caímos.
Vícios criativos, fugas
sem vestígios, novos apelidos
não desfazem a ligação
e caímos
num redemoinho
de controles-remoto e telefones celulares
para evitar que nos olhemos nos olhos
depois da derrota
de nossa frota inexperiente
em matéria de paz.

Qual a trilha para o filme
de nossas vidas?
Qual a cena que não gostaríamos
de lembrar?
Os fantasmas da paixão
nos sufocam
com suas túnicas góticas
e gememos,
espremidos no tubo de ensaio
de um cientista insano.
Somos parte de um projeto macabro:
acabou-se a era dos super-heróis,
não temos guarda-costas
nem dublês
para as cenas de nudez.
Quem poderá administrar,
governar o mundo do sentimento?
(Políticos pioram a coisas,
com sua típica fantasia de controle.)

Ninguém detém a teoria
desta base volúvel da existência.
Apenas sentimos.

Não posso deixar de sentir
e as lágrimas me ofuscam
a visão.
A visão do paraíso numa canção
acalenta
as vítimas da paixão.

A visão de um paraíso numa canção
alimenta
as vítimas da paixão.



(Apêndice:)

Novos termos clínicos
para o velho e conhecido
desespero,
novos símbolos de poder
e subjugação sexual
não nos conduzem um ao outro
quando a solidão e o desejo
fazem-nos subir pelas paredes
e implorar por um elixir
que nos faça suportar
a dura lógica.








Ziphius cavirostris (lamentação oceânica)






“Satanás não desceria aos infernos sem levar consigo uma parte viva do céu ou a usar como elmo. (...) A grande mortalha do oceano continuou a ondular, como já ondulava há cinco mil anos.”
– Herman Melville, “Moby Dick”
“...E só eu escapei para contar-te.”

– O Livro de Jó



Crustáceos –
cracas, mariscos.
Águas-vivas? – apenas gaivotas
escapam ilesas.
Coisas aladas que mergulham.
Borbulham volteios no sal aéreo.
O Continente Perdido,
ante a luz das glórias além-mar,
é lembrança que se dilui
na espuma de nosso desejo indefinido.

Uma torre de água

projeta-se no horizonte;
a volúpia irascível
de um anticiclone sem forma.

As crianças perdidas de Mu

acariciam seus órgãos genitais
e as partes mais ocultas
de sua nova forma.

Leviatã deixa atrás de si um sulco brilhante,
o abismo coberto de cãs.
Cardumes de jovens machos
em complô contra o líder encanecido:
serão renegados à zona dos recifes malditos
dos mares mais selvagens.

O mar sibila em minhas veias,
borbulha em meu coração,
interestelar pulsão
que flui e transborda!

Deixe o mar fluir até você.
Como eu, absorva o retrato exato
do momento mais decisivo.
Mas nunca espere o que espera:
não há respostas para perguntas
lançadas ao vento.

Vendavais lascivos e previsíveis
assolam o dorso dos inocentes,
chispam nos molhes dormentes,
torturam o casco fendido...
Tufão de pesadelos texturais.
A tirania fantasmal forjada em fúria insana
golpeia sem trégua o abdômen
dos meninos encurralados
– como pode um corpo tão mirrado
suportar tanta dor?
Kraken do bispo Pontoppidan.

O marujo incauto
perde-se em meio ao jorro de água e vapor.
O mar das Calábrias ferve,
o mar de Perséfone é gelo e vingança.

Do céu azul,
do céu azul nada cai
além de nossas últimas desesperadas esperanças,
montadas em ingênuos mitos alardeados.
Tirem-nos daqui!
Tirem-os daqui...
Ferros e lanças e presas retorcidas,
costelas e terrores de baleia;
um turbilhão como um tacho fervente
dividindo os continentes.
As crianças perdidas de Mu
masturbam-se ao som da voz
dos jovens príncipes atlantes
e estou tão distante agora...

Gema primeva, revolve-se o magma;
nossos sonhos, diluídos em pragma
de tratos e contratos náuticos,
é inútil combate  teologia da contemplação.
Liberte-os do abismo das Marianas,
deixe-os ver a luz do sol!
Liberte-me daqui; se meu instinto permanecer calado
será mais outra história sem final.

Selvagens de bronze
arrombam a porta do camarote,
um relâmpago viril
tatua o destino no convés do navio.
Borrascas não levam embora
o choque entre o primitivo e o mordaz.
Uma voz, de súbito,
rouqueja sobre metafísica.
Onde me encontro?
Quem sou eu?
Em que fenda do tempo mergulhei?
Mais uma vez:
onde agoniza minha jovialidade?

Estrelas agonizantes,
tão pequenas em minhas mãos:
se eu morresse agora, tudo faria mais sentido...
É tão calado o fim do mundo
dentro do meu pensamento,
que não consigo absorver devidamente
o abalo titânico
macrofilmado na película da consciência.
No vórtice do tornado,
no olho do furacão,
encontro minha paz e minha perdição.

Lembro-me da última vez que vi
quem amei mais que a mim.
Incapacitado que esteja
de bem amar o que me seja.
Eu não sou o Leviatã,
mas apenas um desconhecido e patético espectador.
Dois pequenos dentes e uma cósmica solidão.
Ignorado pelo sultão
assentado entre as luas de Saturno.
Pelo senhorio Macrocéfalo banido
para tormentosas latitudes.
Me perdi ao longo do Estreito de Malaca,
Cruzei o Cabo Horn e o Cabo da Boa Esperança,
um mar de lágrimas se derramou e me cobriu
e entre suspiros, as sereias em coro diziam:
“Metáfora alguma há
que supere em beleza seu significado...”
(... e os significados se somam,
interpõem, combinam e se repelem
sem esgotar jamais
o significante.)

O abismo oculta o segredo.

O amor subsiste,
talvez como uma âncora não localizada
de antiga embarcação naufragada.
A chuva é habitual
no reino do pós-guerra,
nas enseadas perdidas
e a envolver
velhos faróis adormecidos.

O velho marinheiro se embriaga de lembranças;
abrem-se as comportas do absurdo;
libertam-se os apenados
apenas para caírem nos braços do vazio.
Sereias também erram:
a dor é a única verdade;
perdem-se as lembranças:
o velho marinheiro se contrai.

Chega então o malfadado momento:
céu e terra tremem
na tonitruante expectativa.
E de repente saltam as placas continentais;
a expulsão de magma vivo
afasta as nuvens circulantes.
Mais alto,
mais alto que os gritos
paira o coro grandiloquente
das perversas divindades.
Chocam-se água e fogo,
saltam os horrendos cetáceos:
o bosque de ferros em suas costas
desprende-se e as farpas chovem
sobre os aturdidos mortais.

O grande maelstrom
não deixa testemunhas terrícolas.
O que era um sonho de independência,
emancipada realização,
coletiva extroversão,
afunda agora na insana convulsão
dos elementos naturais.
Quem dera meus olhos
pudessem esquecer a cena...
Nada pude fazer.

Está tudo acabado,
está tudo submerso
e os séculos que se seguirão
tentarão ocultar a história,
mas eu vi e aprendi a lição,
enquanto o descomunal sorvedouro do oceano
tragava seus minúsculos filhos,
qual implacável divindade.
Uma malignidade desafiadora
a expor seu ponto fraco
na própria covardia.
E toda dor que se pode sentir
acometeu-se sobre a absoluta inocência.
A absoluta inocência.
Absoluta Inocência,
AbSoLuTa InOcÊnCiA,
ABsOLuTA iNOcÊNcIA,

ABSOLUTA INOCÊNCIA,
LIBERTE-SE DAS CORRENTES!
CELESTIAL INOCÊNCIA,
SALTE PARA O SOL!

(Nada pude então fazer,
além de contemplar e chorar...
e com minhas lágrimas
criar um novo mar...
e sobre ele navegar,
para o resto da eternidade...)








Cinderelo





A madrugada inteira em meu quarto,
fingindo dormir, chorando em silêncio
e o som de uma distante liberdade mal aproveitada
e caricatural
onde você corrói sua vitalidade...
Eu tento dormir,
mas o som da música me põe a perguntar:
por que estou aqui se não há em mim culpa
pelos seus pecados?
Que bocas você estaria beijando?
Quais corpos estaria abraçando?
E que gênero de morte estaria esperando por você?
A madrugada inteira a me perguntar
de que matéria sou feito
e com que propósito fui deixado aqui,
enquanto você sorri e balança os braços
para a multidão suada que lhe estende os braços
de amor e ódio tão triviais...

Massas humanas,
mesmo encobrindo seu ufanismo,
envolvem-lhe num pacto eterno
de cumplicidade provinciana.
Algo em mim...
Algo em mim quer dormir...
Algum mecanismo de defesa intenta me poupar,
mas quero acreditar que o amor existe
em algum lugar além do sonho,
em algum lugar além da esperança,
– algum lugar além das quatro paredes.

Você balança como uma folha ao vento.
Posso até ver... quase tocar... ao menos imaginar
(A VIDA INTEIRA EM MEU QUARTO).




Papai & Mamãe





Papai e Mamãe,
sou gay.

Mentirinha.
Sou uma lésbica
com crise de identidade.

Sou uma amazona
sem amazonas por perto
para lhe consolar.

Às vezes nem faço questão
de consolos assim;
por vezes,
de consolo algum.

Me contento com meu singular espelho –
pena que ele às vezes me quebre
sem dó nem piedade.

Há também ocasiões
(uma vida inteira?)
em que minhas contrapartes biológicas
não conseguem emendar
meus pedacinhos.

E espero sinceramente
que elas se emendem a si mesmas logo;
não sou rancoroso.
Ninguém tem culpa,
de qualquer maneira...

Papai e Mamãe,
eu perdoo, amo e aceito vocês
do jeito que são.

Bichas-loucas
através do espelho de Alice.

(Guardarei as belas e insinuantes fotos
das suas infâncias
em meu álbum de segredos nebulosos.)