segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O pôr do sol atômico de Diôsefe Macondos




Assim agachado na borda do terraço do edifício, Diôsefe não sabe dizer se ele parece mais uma gárgula, ou um suicida, ou um super-herói estereotipado. Ninguém repara nele ali, de qualquer forma – naturalmente, o suicídio está descartado pela simples falta de um público. Sem impacto social, não faria o menor sentido.
 
Passados tantos anos no implacável questionamento, agora ele nem mais aguenta continuar tentando. Para não ter de pensar em ser, ou não ser, ou parecer, ou desaparecer, ele se analisa em terceira pessoa, como se os pensamentos e os sentimentos se emoldurassem / encaixassem numa objetividade. O sujeito poderia ser o próprio Universo, o das múltiplas criaturas analisadoras. O anti-herói só se deseja objeto.
 
Na cena seguinte, já percebemos que ele está sob efeito de alguma droga ou fármaco. Perambula zumbificadamente pela orla do lago Guaíba dentro de uma esfera mental onde simplesmente não existem seres humanos ou humanoides. Somente ele e a vastidão descompartimentalizada.
 
Realidade. Essa é a primeira, e quiçá a única vez que provara LSD, a única droga que jamais havia provado. Só o que faltava, agora, para se decidir entre os dois lados do portal do desaparecimento.
 
Primeiramente, a noção do tempo se altera. O cenário psíquico é um elo insano entre a Era Industrial vaporosa e um Apocalipse nuclear pós Terceira Guerra. Dourados e sépias incomuns à maioria dos usuários da substância. Criaturas e coisas do passado, incluindo a infância, surgem imiscuídas com a banalidade, sobrepostas e em movimento interativo. Um misto dos espaços e dos tempos. Até mesmo as circunstâncias de seu nascimento, num Uruguai nebuloso dos anos oitenta, agora vistas além da personalidade e da individualidade. Ele se vê dançando todos os ridículos ritmos ocidentais filtrados pela cultura do Sul do Brasil, bem como as tentativas de replicar as novidades do mundinho da pornografia dos anos noventa, ao bel prazer de sua irreprimível pansexualidade. Entrevê detalhes de um corpo másculo – o de seu próprio psicanalista, por quem desenvolvera uma atração selvagem, nada sublimada ou intelectualizada. Algo que não deveria ser tido como ridículo ou absurdo. (Afinal, ninguém ali almejava uma cura para nada...) Fatos da vida, que têm sempre seu valor. Ao mesmo tempo, tudo parece destinado a ser deixado para trás, como toda aquela parte do Universo que sempre fica atrás de nossa nuca. As coisas mergulham continuamente no invisível (de onde elas também surgem).
 
Está agora com metade do corpo dentro da água, sentindo os pedregulhos contra a sola dos pés. Sim, ele tirara os sapatos, porque já planejara nadar. Nadar até o fim do mundo, ou o fim de sua História particular, coisas que talvez coincidissem num dia como hoje (ou tarde, melhor dizendo). O Sol seria alcançado. Finalmente: seria não apenas tocado, mas se mesclaria ao seu adorador. Tomado por um sorridente delírio, Diôsefe ofega e cantarola uma mistura de referências poéticas e musicais, enquanto avança em direção ao globo luminoso envolto no mais vermelho dos horizontes. Era só ele e o pôr do sol – não precisava existir mais nada no mundo.
 
Eis que, de repente, a bolona radiante se expande, ou explode, se transformando num espantoso cogumelo atômico. A explosão definitiva, a aniquilação mais absoluta e traiçoeira.
 
Gritos, gritos ensandecidos; movimento borbulhante frenético no meio de um lago...
 
Mas isso foi apenas durante o tempo necessário para o anti-herói desenvolver a estratégia estocolmista última... Ele deveria somente se entregar, deixar-se levar, celebrar o Fim. Afundar-se no bojo da mais subitamente bela perdição... Uma vez virada a alavanca libidinal da vontade cósmica individualizada.
 
O Pós-Apocalipse, a música do caos, o reverso do som da Criação, única assombrosa nota com quatro pianos simultâneos.
 
Ele jamais havia aprendido a nadar.







Foto: Alfonso Abraham

Nenhum comentário:

Postar um comentário