sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Casa abandonada





Invadiremos
a casa abandonada.
Já saberemos
o que ela guarda.
Em porões...
torreões...
meandros...
emparedamentos...

E ninguém vai dizer
que vai retroceder.
Do ponto em que chegamos,
só se pode mais e mais descer.
Nem que seja aos quintos
onde Dante se perdeu.
Clichê de plot twist:
um de nós já morreu.
(Provavelmente eu.)

Deste mistério
que aqui nos aguarda,
na retaguarda
do cemitério anexo
ao complexo,
se tem inscrita
a pista criptografada.

E ninguém vai dizer
que vai retroceder.
Do ponto em que chegamos,
só se pode mais e mais descer.
Nem que seja aos quintos
onde Dante se perdeu.
Clichê de plot twist:
um de nós já morreu.
(Quase certo que sou eu.)

E dançaremos
essa vertigem.
Nossas origens
conheceremos.
Um reino de luz e sombra,
a base que jamais tombará.

E ninguém vai dizer
que vai retroceder.
Do ponto em que chegamos,
só se pode mais e mais descer.
Nem que seja aos quintos
onde Dante se perdeu.
Clichê de plot twist:
um de nós já morreu.
(E pela lógica, sou eu.
Sempre, sempre eu.
Eternamente eu.
Eu, eu, eu, eu...)







quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Post mortem






Quando você ler esta carta,

já estarei morto e enterrado,
como algo do passado
que rápido passou, e mesmo gritando
aos sete ventos seu recado,
não foi escutado.

Quando alguém lembrar da utilidade
social de um amigo da eternidade,
você já não estará mais no mundo
e nem nossos restos jazerão juntos.
E então...

Lendas da paixão se queimarão
a cento e cinquenta e um Fahrenheit,
implacável zeitgeist.
Motocicletas rugirão, desfilando
sobre o chão recém pavimentado
sobre o sangue derramado.

Quando fazíamos filas nos circos
e coloríamos de balões os domingos,
bem pouco você me olhava nos olhos
nos raros dias em que esteve sóbrio.
Sinais óbvios de um fim anunciado.

Lovecraft morreu desconhecido;
Kafka, desnutrido;
Alan Poe se perdeu na vida;
Melville morreu na estiva.
E quem sou eu na fila do pão
para ter a pretensão
de ganhar essa atenção?

Alucinações que nos seduziram,
entorpecimentos que nos dormiram,
excitamentos que nos distraíram,
piadas velhas das quais todos riram
e depois as esqueceram.

Quando você ler esta carta,
já estarei morto e enterrado,
sem ninguém ao meu lado.
O tempo passará
e ninguém lembrará deste pobre apaixonado
por um sonho rimado.








sábado, 24 de agosto de 2024

As cidades em que nunca morei






Me encontre lá,
onde o sol se põe,
a lembrança de uma cena que sonhei.
O chamado soa,
uma canção ressoa
das cidades em que eu nunca morei.

Janelas abertas
para a vida entrar;
ruas e calçadas, traçado painel.
Poder ser quem sou
sem ter de escolher
as palavras e os gestos sob o céu.

Um lugar
onde se possa caminhar
e não marchar, compartilhada trilha
de emoções.
Somos dois, somos milhões
de andarilhos
nessa busca de uma terra de promissão,
ou uma brecha
na organização.

Quando conheci
alguém que já viu
o vislumbre do meu sonho estimado,
parecia haver 
um sinal em meio ao caos,
a presença da esperança ao meu lado.

Num instante,
aquela intimidade amante
há tempos esquecida
fez-se da vida a razão.
Os cinemas da ilusão
não poderiam jamais suplantar
a certeza de ser real
o nosso mútuo ideal.

Me encontre lá,
onde o sol nascerá,
o retorno do único honorável rei.
Sucessão de luas
até ganharmos as ruas
das cidades em que eu nunca morei.

As cidades em que eu nunca morei.
As cidades em que eu nunca morei.








domingo, 11 de agosto de 2024

Ratos II / Ruínas




(Estupefatos, os ratos amestrados
entre canos acrílicos
não reconhecem o ambiente.)
 
Ziguezagueando pelo escombro superpovoado,
o míssil teleguiado faz a curva impossível
rumo às crias da sarjeta;
a Dama da Escopeta me puxa para fora
do vapor intoxicante
e seguimos adiante por caminhos separados,
interligados pelos códigos assimilados.
E do desnível, a cerca invisível
feita propositalmente para a eletrocussão
por indução psicológica,
convulsão espasmódica costumeira na armadilha,
os céus de baunilha como um sonho lúcido
deixam translúcida a sanha pelo extermínio;
carcaças de alumínio e titânio e silício pensante
soerguem-se como gigantes
sem um criador benevolente,
enquanto os crentes num inferno redentor
pela ocupação produtiva,
em carne viva, na dor cativa,
caem um a um, dominós dominados,
Iluminados pela luz clínica
do cinismo ciclotímico
do registro audiovideogravado
viralizado pelos labirintos
por onde somos canalizados.
Escoando vou, e você vem,
se esgueirando pelo túnel do trem semi-inundado
até às ruínas do que fora uma estação,
antes da radiação
evacuadora da civilização.
E, de repente, alguém está ali ao lado da roleta:
a Dama da Escopeta.
(E ela diz: "Chega de rimas".)







quinta-feira, 16 de maio de 2024

Oganza Bizaza





Oganza Bizaza,
Oganza Bizaza
 
vem
 
aos mundos fulgurantes, vem
aos submundos; vêm também
augúrios tais que jamais têm
do caos murmurante o aquém.
 
Oganza Bizaza,
Oganza Bizaza
 
vem
 
maresiando o convés,
anestesiando os pés
dos peregrinos pontuais
nos mesmerismos siderais.
 
Oganza Bizaza.
Oganza Bizaza.
 
Do invisível,
a vida inteira é fração.
Ficção histérica –
Vênus Totêmica.








Art by: René Magritte 

quarta-feira, 20 de março de 2024

Deserto zen




Você vem me segurar no ar
de um tipo de apego que não se pode respirar.
Minha aspiração está além.
A visão de um deserto zen.

Os cactos em flor apontam para a lua ocre
antes que a faixa lilás do poente se desfoque.
Arbustos rolantes vêm
brincar de ser alguém

que já aprendeu
a reter o senso da beleza em si.
Me refugio à sombra das rochas de dia
e à noite a fogueira dança.

O tempo se paralisa
durante o beijo das almas fugitivas.
O que foi e o que virá,
o deserto responderá.

A raiz vai lhe ajudar
a se enxergar por dentro.
Apenas se arrisque na imersão
no Ponto Zabriskie do seu coração.

Você vem me segurar no ar
de um tipo de apego que não se pode respirar,
mas a sua redenção já vem:
a unção do deserto zen.









segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O pôr do sol atômico de Diôsefe Macondos




Assim agachado na borda do terraço do edifício, Diôsefe não sabe dizer se ele parece mais uma gárgula, ou um suicida, ou um super-herói estereotipado. Ninguém repara nele ali, de qualquer forma – naturalmente, o suicídio está descartado pela simples falta de um público. Sem impacto social, não faria o menor sentido.
 
Passados tantos anos no implacável questionamento, agora ele nem mais aguenta continuar tentando. Para não ter de pensar em ser, ou não ser, ou parecer, ou desaparecer, ele se analisa em terceira pessoa, como se os pensamentos e os sentimentos se emoldurassem / encaixassem numa objetividade. O sujeito poderia ser o próprio Universo, o das múltiplas criaturas analisadoras. O anti-herói só se deseja objeto.
 
Na cena seguinte, já percebemos que ele está sob efeito de alguma droga ou fármaco. Perambula zumbificadamente pela orla do lago Guaíba dentro de uma esfera mental onde simplesmente não existem seres humanos ou humanoides. Somente ele e a vastidão descompartimentalizada.
 
Realidade. Essa é a primeira, e quiçá a única vez que provara LSD, a única droga que jamais havia provado. Só o que faltava, agora, para se decidir entre os dois lados do portal do desaparecimento.
 
Primeiramente, a noção do tempo se altera. O cenário psíquico é um elo insano entre a Era Industrial vaporosa e um Apocalipse nuclear pós Terceira Guerra. Dourados e sépias incomuns à maioria dos usuários da substância. Criaturas e coisas do passado, incluindo a infância, surgem imiscuídas com a banalidade, sobrepostas e em movimento interativo. Um misto dos espaços e dos tempos. Até mesmo as circunstâncias de seu nascimento, num Uruguai nebuloso dos anos oitenta, agora vistas além da personalidade e da individualidade. Ele se vê dançando todos os ridículos ritmos ocidentais filtrados pela cultura do Sul do Brasil, bem como as tentativas de replicar as novidades do mundinho da pornografia dos anos noventa, ao bel prazer de sua irreprimível pansexualidade. Entrevê detalhes de um corpo másculo – o de seu próprio psicanalista, por quem desenvolvera uma atração selvagem, nada sublimada ou intelectualizada. Algo que não deveria ser tido como ridículo ou absurdo. (Afinal, ninguém ali almejava uma cura para nada...) Fatos da vida, que têm sempre seu valor. Ao mesmo tempo, tudo parece destinado a ser deixado para trás, como toda aquela parte do Universo que sempre fica atrás de nossa nuca. As coisas mergulham continuamente no invisível (de onde elas também surgem).
 
Está agora com metade do corpo dentro da água, sentindo os pedregulhos contra a sola dos pés. Sim, ele tirara os sapatos, porque já planejara nadar. Nadar até o fim do mundo, ou o fim de sua História particular, coisas que talvez coincidissem num dia como hoje (ou tarde, melhor dizendo). O Sol seria alcançado. Finalmente: seria não apenas tocado, mas se mesclaria ao seu adorador. Tomado por um sorridente delírio, Diôsefe ofega e cantarola uma mistura de referências poéticas e musicais, enquanto avança em direção ao globo luminoso envolto no mais vermelho dos horizontes. Era só ele e o pôr do sol – não precisava existir mais nada no mundo.
 
Eis que, de repente, a bolona radiante se expande, ou explode, se transformando num espantoso cogumelo atômico. A explosão definitiva, a aniquilação mais absoluta e traiçoeira.
 
Gritos, gritos ensandecidos; movimento borbulhante frenético no meio de um lago...
 
Mas isso foi apenas durante o tempo necessário para o anti-herói desenvolver a estratégia estocolmista última... Ele deveria somente se entregar, deixar-se levar, celebrar o Fim. Afundar-se no bojo da mais subitamente bela perdição... Uma vez virada a alavanca libidinal da vontade cósmica individualizada.
 
O Pós-Apocalipse, a música do caos, o reverso do som da Criação, única assombrosa nota com quatro pianos simultâneos.
 
Ele jamais havia aprendido a nadar.








Foto: Alfonso Abraham

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O nítido





Debaixo das cobertas,
esperando pelo temporal,
você não sente o deslocamento da superfície,
mas pressente, ao lento transporte,
o emergir das luzes do abismo.
 
O vício dos anjos,
a jovem tristeza sem remissão.
Uma maré cinzenta que se aproxima
para confirmar que sua solicitada solidão inspiradora
não fora concedida,
mais uma vez.
 
O toque dos seres em sonhos é frio.
O calor tão longamente ansiado e cruelmente negado
– uma urgên
cia que nos foge
por mero capricho já tornado tradicional.
 
A consciência e a atenção se transportam
(portal de cristal).
Novo derretimento das estátuas de sal.
Mas insípida é minha expressão,
esperando pelo temporal.
 
Viajamos em trilhas vaporosas;
viajamos, viajamos ao largo da prudência.
Com desprendimento insano,
viajamos na música
da fragilidade do corpo humano.

Você acoplado ao cenário onírico:
oscilante delimitação do amor.
Forma mais claramente detectável ao meu lado:
tudo lhe darei;
tudo, tudo de meu mundo
tão logo o seu contorno
esteja claro e nítido diante de mim.
 
Faixas de sombra e luz
transluzem os corpos já conhecidos.
Ângulo expositivo.
Estas formas, expandidas são mais belas
que o brado das hordas
além das suas janelas.
 
Tanto migramos de consciência em consciência.
Como não nos perderíamos?
Ó meu único referencial...
 
Ouço sua risada através da bruma,
tento alcançá-lo,
mas sei que em breve despertarei.
despertarei.
despertarei.







Como era antes




Havia barcos de papel,
e os cometas pelo céu,
havia sonho e pão de mel
partilháveis.

Havia luzes no Natal,
havia um porto e um litoral
e um palácio de cristal
inquebrável.

Por um instante, lembrei
como era antes de acontecer
essa discórdia sem misericórdia
em meu país.
Era um tempo mais simples,
que a lembrança redime.

Como era antes.
Como era antes.

Mas não consigo reconhecer
o bairro que me viu crescer
e a cidade ao entardecer
me ignora.

Por um instante, lembrei
como era antes de aparecer
a longa noite a nós desafiante.
E o que restou
são os laços humildes
entre os poucos valentes
que resistem.

Mas talvez chegue a nossa vez
de escrever a nova História,
registrar memórias
e superar esse tempo limite
de compreender que existe
algo a se construir.

Como era antes.
Como era antes.







quarta-feira, 20 de abril de 2022

Tromba




A fraqueza da imaginação
e o império da sensação
e a ditadura da impressão
reduzindo as estaturas
de nossas torres Eiffels
tediosas.
O espaço cósmico agora repartido
em pedacinhos irritantes
para melhor ingestão e digestão
de um deus mimado
e amuado.
 
A coruja empalhada
no centro da mesa de jantar.
(Você não a vê.)
 
Sinto o ardor
desta atmosfera rarefeita
em minha via nasal.
Capítulos da novela reexibida à exaustão
no globo ocular anuviado.
Cupinzeiro imperial.
 
Visualizado – eu – assim entretido
com as amarras do cabrestante
do barco pesqueiro
que jamais me pertencerá,
aguardo a chegada
da vislumbrada torre de água serpentina
e o espatifamento
redentor.