quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Um dia ele vai voltar (não culpe o ácido)*





(Sim, ele voltará.
Cérebro meio destruído por ácido,
sonhos liquefeitos escapando das molduras.)

I

O homem que feriu você voltará um dia,
com a melhor desculpa
desde as oficiais lágrimas americanas
sobre Hiroshima.
Na mão, alguma compensação
ainda não reconhecida pela Justiça.
Um pouco de diálogo,
lembranças de algo que só existiu
na mente daquela que um dia amou de olhos fechados
e que agora querem voltar a se fechar.
Quando ele abraçar você
e pedir outra incondicional rendição,
saiba que os únicos idiotas que o mundo não tolera
são os desprovidos de malícia.

(Ainda somos fãs dele.)

II

Ele vai chegar, sim,
o bom Espírito do Natal,
com todo o encanto dos sinos e dos cantos,
mais sutil que a mais mortal sombra.
Você se pergunta se a barba dele é legal de puxar,
e como as renas aprenderam a voar;
se o calor do verão tropical
não o força a tirar o casacão,
e porque os presentes
estavam antes escondidos no porão;
e tem a dura certeza
de que suas cartas ao Polo Norte foram ignoradas
ou transviadas para não se sabe onde.

(Ele era um cara legal,
mas não o reconheceríamos hoje.)

III

“As trombetas soarão,
os céus estremecerão,
– cumprir-se-ão as profecias!
O Cordeiro ocupará o seu trono
e julgará as nações.
Quando ele voltar,
radiante, onipotente,
onipresente como a Mitologia
e implacável como o Desespero,
e fizer então a rígida separação,
será inaugurada a tão esperada
Era da Redenção Pós-Tecnológica.
O sorriso dos eleitos engolirá suas orelhas
e todo o seu passado de iniquidades,
como fogo eterno engolindo os discernidores.
Tremei, devedores do dízimo!
Ele chegará feito um relâmpago
de horizonte a horizonte
e ninguém diga: ‘vamos lá’, ou ‘venham aqui’,
pois sua glória brilhará
nos meandros da Internet.

(Eu assisti suas performances
na última encarnação.)

IV

Ligue a TV! Ele vai chegar
com o mesmo sorriso de candidato
beijador de criancinhas;
voltará com uma arma mais possante
do que aquela que arrasou meu habitat.
Um passado reformulado,
por quem bem entende de reformas
(sobretudo em jardins).
Uma esportiva imagem de inocência
pedindo paciência e atenção,
ainda lamentando, discretamente, o trágico fim
de um conhecido arquivo humano.
Quando ele voltar,
trará consigo toda uma legião
de continuadores da velha tradição.
A tradição que, afinal,
jamais fora um homem.

(Magia?
Ah, você a procurava também...
E ainda procura, eu sei.
Não culpe o ácido.
Algo mais sedimentou a rebeldia,
corroeu a utopia não vigilante
que pouco se esforçou para entender...
Em algum lugar repousa a fé
nas imaginativas tentativas de canalização
das mais urgentes revoltas.
Mas aquilo que renovaria o mundo
já fechou todas as portas
de sua revolucionária percepção.
Cinco décadas perdidas
e agora...)

V

Uma ideia corroída,
uma sombra alva de pureza,
um semblante à imagem do Super-Homem que matou Deus,
um emblema invertido extraído
de sagradas iconografias e...
algo já voltou,
porque nunca se foi.
Diante da bandeira
as massas estendem as mãos
num espasmo de orgulho e jovialidade,
ampliando os horizontes de sua doutrina.
Os puros e corretos,
agremiados em singulares academias
onde aprendem a massacrar seus dessemelhantes.
Puros... e prontos para purgar o mundo
da escória humana.
Eles estão entre nós
e, através de sua juventude,
talvez ele nos observe à espreita.

Um dia
ele vai nos matar.

(A magia que você procura
será relançada na mais alta qualidade digital.)








* Título alternativo: “Post-rock drama”

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