quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A andança no bairro




Andávamos lado a lado na calçada. A calçada era ampla o suficiente para nossa desenvoltura. Nossa desenvoltura era o caminhar exploratório missionário, como sinal de respeito ao conjunto visível de casas, praças e tudo o mais que constitui um bairro. Um bairro só nosso, uma espécie de continuidade de nossos corpos e almas, uma sincronia perfeita de intenções.

Havia, apesar dessa familiaridade, toda uma carga de mistério – inclusive quanto às intenções e quanto à extensão do corpo composto. A exploração seguiria.

(A palavra “ilusão!” fora gritada em meu ouvido esquerdo. Mas não sei por quem. Os amigos ao lado pareceram não ter ouvido nada. Felizmente, não perceberam meu susto.)

O mais incrível, agora: todo o perigo, ou risco, ou drama, era como que encenado. Como não havia mais perigo algum neste universo – sequer a morte –, a única forma de não se entediar, e para fazer a vida valer a pena, era criar aventuras que pressupunham as ideias de risco e vilania. Brincar de guerra, de violência, de crime e traição. Um enorme teatro vivido, saboreado pelas tardes que caíam.

E quando a tarde caía, os amigos que caminham nos bairros achavam algum recanto de mistério e imaginativo perigo. Para nós, agora, era a floresta que circundava a cidade. Fazíamos de conta que não a conhecíamos, que nela havia tesouros e corpos enterrados, animais exóticos etc. Mergulhamos naquele anoitecer.

O rapaz cavocava ou ajuntava algo do chão. Os demais (e eu) contemplávamos a estranhamente alaranjada sobra de horizonte. O matiz esfumaçado tremulante que nenhum de nós havia plasmado conscientemente.

O desejo do fim não possuía as mesmas cores da espera de um início.








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