sábado, 8 de maio de 2021

“Nós” (desajuste planetário esquizoide)




Estas ruas não nos pertencem.
Estes lares, estes estabelecimentos,
nada disso nos pertence.
Este planeta é uma zombaria
sobre aqueles que jamais pediram para aqui nascer.
 
Nenhum lugar ao sol para chamar de nosso,
nenhum lar seguro
numa civilização cujo único objetivo
é derramar nosso sangue.
 
Não reconhecemos mais os sinais,
os símbolos, as metáforas,
as inumeráveis regras que se derramam
sobre nossos corpos.
Sem dúvida, é o que se denomina
colapso.
 
O colapso da assimilação
e da adaptação.
 
Um mundo explodindo sobre nós,
naturalização e banalização de horrores.
Somos obrigados a conviver com a rotina circundante
dentro ou fora de nossos distritos.
 
Mas uma só coisa é bem clara e indiscutível:
não somos daqui.
Não importa mais se somos da geração dos já naturalizados
ou daquela que primeiramente colonizou este globo.
Até mesmo nossos descendentes carregarão o fardo
da eterna estrangeirização
e do perene estranhamento.
 
Os proscritos,
os desajustados,
os acabrunhados,
a bizarria esquiva e furtiva
na chuva metropolitana.
 
Você já olhou fundo no fundo de nossos olhos?
No centro negro deles?
Aposto que não.
Não teria a audácia.
O ódio e o medo que sempre andaram fundidos
e confundidos nas suas psicologias
e psicopatologias
afugentariam quaisquer tentativas de aproximação.
 
A distância entre nós é maior até
do que aquela entre nossos mundos originários.
Mesmo em eventual contato corporal.
 
Somos os rastejamentos,
as repugnâncias de sangue frio,
as aberrações moles
e as duras realidades
sempre imiscuídas nas rotinas estabelecidas.
 
Nenhum espaço que seja “sideral”,
que seja ideal para um mínimo
de entendimento interpessoal.
Ninguém, afinal, suportaria encarar o rosto
da eterna estranheza cósmica.
Um lar sem lareira,
um recanto sem aconchego
– quem iria querer chegar perto?
Ousar o toque?
Ou até mesmo a ideia de uma intimidade?
 
Quem somos nós, afinal, para vocês?
Para os olhos juízes
que apenas nos vislumbram de relance
e se apressam no cruel veredito?
Como podem esperar
que tenhamos sequer a capacidade
de acatar suas normas, religiões, tradições, mitos?
Como ousam esperar
que respeitemos suas bandeiras e fronteiras?
Que entoemos seus hinos de morticínio?
 
Ah, então é este o ponto...
Eu já devia desconfiar.
 
Alguém sempre se sentindo ameaçado,
seja de qual lado se encontrar.
Uma rotunda rotina, novamente.
 
Mas, por que ainda estamos aqui? Afinal?
 
Perenemente esquivos
a qualquer normalização.
Qualquer banal classificação.
Ainda assim:
somos.
 
Os enigmas que caminham ao seu lado.







COMPLEMENTO:




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