(CONTÉM SPOILERS)
Numa primeira olhada, ‘Cidade dos Sonhos’ seria mais uma obra lynchiana de crítica às hipocrisias da
indústria de Hollywood, e quiçá ao cinema em geral, dando sequência à revelação
das podridões por trás da fábrica da fama iniciada com o filme anterior,
‘Estrada Perdida’ (que se concentrava mais no microcosmo da produção
pornográfica). A presença rapinante do abuso e do assédio sexual forma a aura
destes filmes e também do posterior – ‘Império dos Sonhos’ – o
fechamento de uma trilogia sobre os horrores ocultos do mundo da sétima arte.
O eixo para o entendimento da
trama fragmentada, não linear e não cronológica de ‘Cidade dos Sonhos’ é
saber que a primeira parte do filme é um sonho da protagonista, enquanto a
segunda parte mostra as causas do sonho. Em ambas as narrativas, os elementos
surgem trocados e embaralhados: os mesmos personagens aparecem com outros
rostos, e personagens diferentes têm os mesmos nomes. A "lógica"
dessas alterações é basicamente a explicada por Sigmund Freud em sua teoria dos
sonhos.
A personagem de Naomi Watts (que
se apresenta com nomes diferentes, em fases distintas do enredo) vê a si mesma
nos sonhos como sendo personagens, ela mesma com aspectos diferentes.
O padrinho mafioso que está
sempre numa cadeira. O caubói. O mendigo monstro. Esse aí, talvez seja a
principal representação de si mesma que ela faz. Trata-se da sua autoimagem,
algo que surge do sentimento de culpa após ela ter arquitetado o crime revelado
no final do filme. O rapaz atormentado pelo mendigo monstro, na lanchonete,
também é ela. Ela aparece divida em dois, nesse caso. Atormentada pelo que
imagina ser seu próprio "rosto" desfigurado, o estado de sua
consciência após ter eliminado a pessoa que mais amava.
É quase certo, também, que as
duas figuras masculinas amigáveis na mesa da lanchonete, aparecidas tão repentinamente,
sejam uma versão homoafetiva alternativa da relação lésbica das personagens
femininas, em outro gênero.
A infeliz sonhadora está
retirando todas essas imagens e nomes da vida real, dos simples acontecimentos
ao redor.
Ela viu o caubói naquela festa,
viu vários convidados dos quais a imaginação dela capturou as feições para
depois se valer delas numa narrativa paralela.
Essa narrativa paralela, dos
sonhos dela, é toda fundamentada na noção de julgamento. Ela ora julga e
condena os outros, ora julga e condena a si própria. Por isso aqueles castigos
intermináveis feitos às pessoas supostamente merecedoras desse juízo.
O próprio assassino de aluguel
(que na vida real, executa o plano terrível) é representado como um bobalhão
desastrado - porque, no íntimo dela, a protagonista ainda espera que ele não
consiga matar aquela pessoa. O arrependimento tenta torcer as coisas ao máximo.
A parte estética do filme
também tem seus códigos. A cor vermelha representa o sonho, a parte fantasiosa,
o mundo dos desejos que constitui o sonho. Já o azul é seu oposto: representa a
realidade fora do sonho. No caso dessa história, uma realidade da qual se
pretende fugir: a responsabilidade por um ato terrível. Repare como a
protagonista tem espaços de pânico durante os tempestuosos flashes de luz azul
na sequência do Clube Silêncio.
A caixa azul serve como um
portal entre as duas dimensões, é algo intrigante e assustador. É o caminho
para a realidade terrível. A chave estilizada do sonho (que tem um
correspondente no mundo real com outro formato, mas da mesma cor) está
obviamente ligada à caixa. No entanto, é aquela pequena chave do mundo real,
pertencente outrora ao assassino de aluguel, mas depois presenteada à pessoa
que encomendou o crime, que fornece a significação da cor azul que será
integrada ao mundo do sonho. Porque esse objeto fica dali em diante servindo de
pivô fetichístico em torno do qual as demais imagens oníricas circulam.
Naturalmente, o vermelho está
relacionado ao desejo. Matéria prima básica dos sonhos.
Há um curioso contraponto
entre a misteriosa tia Ruth, com seus cabelos ruivos, e a mulher de cabelos
azuis que assiste de camarote às apresentações assumidamente fake no palco do clube.
Curiosamente, na primeiríssima
cena (a dança anacrônica) vemos um fundo violeta (roxo/lilás/púrpura, chamem
como quiserem), ou seja, a fusão das duas cores fundamentais. Isso indica uma
ambiguidade: essa cena pode estar se passando em ambas as dimensões. Tanto na
“interna” como na “externa”.
Por fim, o casal de idosos
representa a segurança da normatividade máxima, a aceitação coletiva, a
inserção no status quo, que é até invejada pela protagonista. Ela se atrai por
mulheres. No fundo da mente, ela desconfia que sua lesbianidade não a levará a
formar uma família, ou a ter filhos, ter um lar seguro e uma aceitação social –
tudo que um feliz casal idoso representa. Então aquele par (do qual o filme não
faz questão de mostrar a origem imagética) surge, no final, como um fator
repressor esmagador, uma implacável autopunição.
Mas o filme vai ainda além de
ser uma amostra ou panorama da parte inconsciente do ser humano e os mecanismos
com os quais aquele se mostra. 'Mulholland Drive' é principalmente um discurso
sobre a natureza do amor, em seu aspecto mais trágico.
Um grande medo, e grande
risco, para toda pessoa, é a possibilidade do amor ser somente subjetivo – algo
vivido solitariamente. Sem correspondência à altura, da parte do objeto de
amor, do ser amado. Toda a fantasia de amor da personagem está
sendo vivida dentro dela mesma, enclausurada na sua pessoa. Não há nenhuma
indicação concreta de que a mulher que tanto fora sua amada realmente a amasse.
Pior: ela se revela uma grande fraude, um ser manipulador, sádico e cruel, que
faz jogo de gato e rato com os sentimentos alheios. Alguém definitivamente não
merecedor de devoção. Mas – se pergunta aqui – onde teria ficado o AMOR?
Durante todo o tempo, onde ele residiu?
Na clausura da subjetividade. No mundo interno da
psique da jovem atriz. Um amor na completa solidão, num mundo só de ilusão.
Confinado e isolado no mundo dos sonhos.
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