segunda-feira, 7 de junho de 2021

Poema comestível VI





Apresentador:
 
Comer! Comer, comer para poder crescer!
Abaixo destas costelas de magreza,
um vácuo ruge!
Ainda há forças para tanto!
A garantia do espetáculo...
 
Coro:
 
Banquete! Banquete!
Não se espera o enfeite,
o convite ou o sarau.
Extermínio das formalidades!
A pressão tamanha
sobre o tubo e o aparelho digestório
ordenará a ingestão
de cada peça e fragmento do escombro
horrendo.
 
Gladiador 1:
 
Não fui criado para interpretar.
Todo o sangue é real.
 
Coro:
 
Real! Real!
Cada fluido corporal.
Cada peça móvel do jogo fatal.
As feras mais famintas
aguardam pelo sinal.
 
Plateia:
 
Circo! Circo! Circo!
 
Imperador:
 
Ó este tédio mortal...
Ó estas nuvens que pouco saem do lugar...
As divindades que nunca se esforçam
para provar que existem.
Esta tradição herdada
de ingestão e regurgitação
é o liame entre o trágico e o cômico
e nada posso fazer
para disto me esquivar.
Ah, se soubessem
que não reino ou impero sobre coisa alguma...
 
Plateia:
 
Estraçalhem! Estraçalhem demais!
Dê-nos sangue! Dê-nos vermelha paz!
 
Coro:
 
Pressão, pressão, pressão universal
que rima, rima, rima
com máquinas celestes indiferentes,
com corridas de bigas de trapaça,
com trupes de bardos plagiadores
de narrativas atlantes fora de contexto:
vidas breves.
 
Gladiadores 1, 2 e 3:
 
Não somos pagos para cantar.
 
Apresentador:
 
As vidas, vidas se arrastam
até por pães dormidos
e hóstias de bolor
e luxo decadente
de lupanares de doença.
Chicotes, chicotes
de crenças sobre crenças.
Que venha, que venham mais motivos
para enobrecer ou justificar o choro,
pois o choro é garantido.
 
Imperador:
 
Não posso mais!...
 
(Após um silêncio breve de horrenda expectativa,
uma fila de elefantes incrivelmente magros
e magnanimamente tristes atravessa a arena
de ponta a ponta. Nenhuma fala ou cantoria
durante o trajeto, da parte de ninguém.)
 
Cantor líder do coro (quebrando o silêncio):
 
Eles dançam, eles dançam,
dançam invisíveis,
os deuses que se fartam de ambrosias
inacessíveis às línguas
do Reino Inferior.
 
Plateia:
 
óinc óinc relinch relinch
au au mu mu có có
 
Coro:
 
Aventuras mil
do herói varonil
e seus clichês de dramaturgia
já natimortos...
Engrenagens de máquinas absurdas
que muito ainda percorrerão.
 
Leões do gládio:
 
Como pode uma viva alma
enxergar espetáculo
em tamanha banalidade?...








Nenhum comentário:

Postar um comentário