domingo, 13 de junho de 2021

Poema comestível VIII





Venho caminhando por corredores
diferentes dos corredores de outrora;
outros ductos, novos túneis,
passagens nunca antes imaginadas
sem saídas e sem entradas
facilmente identificáveis.
Tubos e conexões interpostos,
justapostos, extraordinários
como num pesadelo episódico.
E por falar em sabor,
é justamente o ponto em que não ousei tocar
durante todo o treinamento;
não ousei a pergunta
pelo receio do possível ridículo.
Poderia saber agora?
 
Setor de Nutrição.
Foi até fácil de achar, penso eu,
considerando a enormidade da espaçonave.
E o que procuro é minha única opção de sustento,
no momento.
 
(Corte para o sonho do hibernauta.)
 
Cabeça, tronco e membros.
Cabeça, tronco e meeeeeeeeeeeeeeeeeeee
eeeeeeeeeeeeeeuuudeeeeeeeeeeeuuusdoc
O que está havendo?
Seria este o funil
absorvedor de toda e qualquer luz?
Apego-me às minhas luzinhas
que são minhas esperanças
de discernimento de formas e cores e texturas.
Algo que talvez reste de mim,
algo que me defina;
ao menos uma imagem residual do que fui
ou pensei ser...
Em último caso, um ex-ser
moldado em luz.
Que ela haja...
Haja ela...
Meeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
 
(Corte para o Setor de Nutrição.)
 
Uma vida sem prazer.
Sem açúcar, sem gordura.
Simplesmente o manter-se vivo
para alguma finalidade ou funcionalidade
além de mim mesmo.
Um mecanismo, uma roldana complexa
ambulante, peripateticamente
alheado dos desejos pessoais.
Pílulas. Pílulas para quase tudo
e respostas para quase nada.
Afinal, não ousei ingerir
a feita para a doença da dúvida...
 
Mas é a dúvida, esta sem vergonha,
que me mantém humano.
Em movimento, nos meus próprios termos.
Continuamente infeliz, admito...
Mas ainda eu.
Ainda me tenho!
 
(Corte para o cenário que está na cabeça
de quem lê isto.)
 
Valorize, valorize cada segundo
do que você saboreia.
Em gratidão, e em distribuição
dos sabores.
Revolucione os meios de produção
do saboreável,
coletivize suas descobertas,
planifique o montante dos estilhaços
de felicidade.
Estejam agora as ferramentas
em suas mãos.
 
E quanto a vocês,
montantes de robôs programados
e fantoches manipulados,
escutem este grito! Este apelo!
No dia em que se acabarem
todas as pífias fontes de prazer
e reles motivos para se viver
que lhes foram ofertados ou impostos,
seriam vocês capazes de conceber
uma nova via?
Enxergar além dos véus
e muros e fronteiras e barreiras
e bairrismos absurdos?
 
(O que está havendo, afinal?
O que houve com a fantasia de controle?
Dissolvida, descaracterizada,
terceirizada.
Quão nossas são nossas palavras?
Nossos pensamentos?
 
O Ser Autêntico...
Ó misterioso golem nunca devidamente animizado
para caminhar
e perambular sobre o chão do planeta
que clama por salvação...
 
Visão súbita de insetos esperneantes
instrumentalizados.)
 
Todos agora na grande expectativa
pelo grande engolimento.
Quem diria... sermos nós o alimento...
Criados e recriados
ao longo de milhões de anos
e zilhões de lágrimas vertidas
e suor e sangue e tudo o mais
justamente para sermos lançados num negro buraco
para o bem de algo supremamente desconhecido.
As imagens mentais tão ingênuas
de nossos deuses e crenças 
evanescendo
como fumaça cenográfica.
 
Aliás, tudo que nos é familiar.
 
E outras novas pílulas
para suportar um novo assombro.








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