“Uma
liberdade tomada apenas no contexto do pensamento implica uma meia-escravidão,
quando muito, mas nunca uma Libertação.”
Pode um escravo filosofar? – se faço essa pergunta, é
porque intuo que haja algo de escravo em boa parte da humanidade, e que isso
inclui a mim mesmo. É algo difícil de aceitar, mas necessário de encarar, uma
vez que definir claramente a realidade é o primeiro passo para sua superação.
Defino filosofar como sendo o processo iniciado por uma
reflexão de caráter crítico, que será seguida por uma atitude correspondente;
processo de aspirações universalizantes (analisando o amplo quadro de um
problema sem perder de vista os detalhes) e que se realiza em liberdade – de
pensamento, como ponto de partida. O que necessariamente exclui preconceitos e
“estreiteza” mental. Uma mentalidade ao mesmo tempo aberta, atenta,
absorvedora, mas com capacidade de sintetizar
os dados coletados num todo teórico coerente, estruturado, articulado. Seja sistema
ou visão de mundo, o que importa é que o objetivo desse imenso corpo de saber
(e de duvidar, também, para quem preferir definições negativas das coisas) seja
o de levar a uma ação - a ÉTICA é
sempre a culminância da filosofia, seu produto final. Todo o sistema teórico é
apenas para embasar e justificar a atitude.
Liberdade é a palavra-chave. Já vimos que não é possível
filosofar sem liberdade de pensamento. Como obter uma liberdade objetiva, fora
da mente, sem que a mente esteja primeiramente livre, ela mesma?
Já que falamos de escravidão, observemos suas duas acepções: uma
física e outra mental. É distinção somente prática, para nosso
entendimento, já que toda forma de tolhimento, restrição, opressão e
constrangimento atingem simultaneamente o corpo e a mente, trabalhando ambos,
mesmo quando se inicia com mais ênfase sobre um deles em particular (como
veremos mais tarde). Corpos constrangidos = mentes constrangidas.
Muitos que se julgam livres em seus pensamentos (há quem
considere o pensamento a única instância possível de liberdade) não estão
devidamente cônscios da magnitude da lavagem cerebral a que foram submetidos:
consideram-se independentes no pensamento, mas ignoram que suas ideias “independentes”
podem bem ser meras REAÇÕES previstas e pré-programadas pelos seus opressores/escravizadores.
Ou seja, muitas das ditas “idéias libertárias” dos ditos
“desfavorecidos” são indiretamente produzidas pelos próprios “favorecidos”
lavadores de cérebros.
Exemplos típicos: estratégias de guerra (os inimigos
deixam pistas falsas um para o outro, e muitos deles até se entusiasmam com a
direção tomada, julgando isso um primor de suas próprias inteligências
estratégicas, sem sequer desconfiar que estão sendo manipulados) e jogo de
xadrez (onde não apenas temos que analisar bem a conjuntura das peças de ambos
os lados, mas também imaginar o que
se passa na cabeça do adversário, e ainda traçar uma estratégia para induzi-lo ao erro, tudo isso num curto
espaço de tempo), para ficar só com alguns.
Imagine agora o que não está sendo feito para o
condicionamento público, para orientar-nos a uma atitude, de modo a ainda
pensarmos que as escolhas são nossas; nós, consumidores, trabalhadores,
produtores, frequentadores, apreciadores e depreciadores...
Tenhamos agora uma apreensão mais ampla do drama da
liberdade, situando-nos numa postura crítica cônscia da atualidade.
Por que, pois, defino a atual restrição e condicionamento
social como escravidão? O que nos parece, afinal, uma escravidão?
Não quero aqui me valer do termo como metáfora. Quando
digo escravidão, coloco-a, sobretudo, nos contextos de TRABALHO e
condicionamento físico, seguindo o senso comum. Toda a tradicional formação do pensamento escravo advém destas
condições, o inverso de uma somatização. Isso porque uma liberdade tomada
apenas no contexto do pensamento implica uma meia-escravidão, quando muito, mas
nunca uma Libertação.
Em nosso país, a única escravidão por agora abolida é
aquela que antes vitimava exclusivamente as populações afrodescendentes e
indígenas. A atual, todavia, é pior, pois é mais massificada e
institucionalizada, e inclui a todos, sem distinção de raça ou classe, e
caracterizada por uma alienação
artificialista-despersonalizante-fetichista.
Digo que não há acepção de classe porque não me refiro
apenas ao trabalho no contexto proletário, característico da Revolução
Industrial e já há muito criticado pelos movimentos sindicais e socialistas. As
formas atuais de escravidão vão mais longe, se aproveitando de qualquer
circunstância que propicie a venda e negociação do indivíduo, transformado num
ser híbrido “multiuso”: produto-produtor-utensílio-consumidor.
Se essa “multifunção” do ser humano é algo natural e
inevitável, não o poderemos averiguar por enquanto. O que quero tratar é do abuso da função “produto útil” da
pessoa, que se vê obrigada a “se vender” a uma empresa ou a um mercado (caso
seja dona de sua própria empresa), objetificando-se, alheando-se, alienando-se
por compulsão do espectro do desemprego e da dita Lei da Selva.
E, depois de tornar-se POSSE ou propriedade útil de
outrem, ainda é submetida a um regime de trabalho que, ao contrário de ser a
alegada “experiência curricular” incrementadora da especialização, seguindo uma
natural vocação, tende, isto sim, a amortecer
as características faculdades da pessoa, tornando-a um ser maquinal e
artificial – ferramenta perfeita, do tipo que nunca reclama.
Na hipótese de esse estado de “homem-ferramenta” ser
natural ou necessário, que possa, ao menos, ou trazer-nos uma justa COMPENSAÇÃO
ao déficit criativo (justificando eticamente a remuneração do tipo salário) ou
realizar-se plenamente como fator de criação, em sentido cultural (justificando
eticamente a autorremuneração ou renda).
E ainda haverá a necessidade de isto tudo se realizar conscientemente pela pessoa, sem que sua
própria dimensão filosófica (que todos possuem, em estado germinal) se deixe
alienar ou vender ao imenso e monstruoso Leviatã do Lucro Não Eticamente
Justificado, também denominado respeitosa e cientificamente Capitalismo.
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