“Satanás não desceria aos infernos sem levar consigo uma parte viva do céu ou a usar como elmo. (...) A grande mortalha do oceano continuou a ondular, como já ondulava há cinco mil anos.”
– Herman Melville, “Moby Dick”
“...E
só eu escapei para contar-te.”
– O Livro
de Jó
Crustáceos –
cracas, mariscos.
Águas-vivas? – apenas gaivotas
escapam ilesas.
Coisas aladas que mergulham.
Borbulham volteios no sal
aéreo.
O Continente Perdido,
ante a luz das glórias além-mar,
é lembrança que se dilui
na espuma de nosso desejo
indefinido.
Uma torre de água
projeta-se no horizonte;
a volúpia irascível
de um anticiclone sem
forma.
As crianças perdidas de Mu
acariciam seus órgãos
genitais
e as partes mais ocultas
de sua nova forma.
Leviatã deixa atrás de si
um sulco brilhante,
o abismo coberto de cãs.
Cardumes de jovens machos
em complô contra o líder
encanecido:
serão renegados à zona dos
recifes malditos
dos mares mais selvagens.
O mar sibila em minhas
veias,
borbulha em meu coração,
interestelar pulsão
que flui e transborda!
Deixe o mar fluir até
você.
Como eu, absorva o retrato
exato
do momento mais decisivo.
Mas nunca espere o que
espera:
não há respostas para
perguntas
lançadas ao vento.
Vendavais lascivos e
previsíveis
assolam o dorso dos
inocentes,
chispam nos molhes dormentes,
torturam o casco
fendido...
Tufão de pesadelos
texturais.
A tirania fantasmal forjada
em fúria insana
golpeia sem trégua o abdômen
dos meninos encurralados
– como pode um corpo tão
mirrado
suportar tanta dor?
Kraken do bispo
Pontoppidan.
O marujo incauto
perde-se em meio ao jorro
de água e vapor.
O mar das Calábrias ferve,
o mar de Perséfone é gelo
e vingança.
Do céu azul,
do céu azul nada cai
além de nossas últimas desesperadas
esperanças,
montadas em ingênuos mitos alardeados.
Tirem-nos daqui!
Tirem-os daqui...
Ferros e lanças e presas
retorcidas,
costelas e terrores de
baleia;
um turbilhão como um tacho
fervente
dividindo os continentes.
As crianças perdidas de Mu
masturbam-se ao som da voz
dos jovens príncipes
atlantes
e estou tão distante
agora...
Gema primeva, revolve-se o
magma;
nossos sonhos, diluídos em
pragma
de tratos e contratos
náuticos,
é inútil combate – teologia
da contemplação.
Liberte-os do abismo das
Marianas,
deixe-os ver a luz do sol!
Liberte-me daqui; se meu
instinto permanecer calado
será mais outra história
sem final.
Selvagens de bronze
arrombam a porta do camarote,
um relâmpago viril
tatua o destino no convés
do navio.
Borrascas não levam embora
o choque entre o primitivo
e o mordaz.
Uma voz, de súbito,
rouqueja sobre metafísica.Onde me encontro?
Quem sou eu?
Em que fenda do tempo
mergulhei?
Mais uma vez:
onde agoniza minha
jovialidade?
Estrelas agonizantes,
tão pequenas em minhas
mãos:
se eu morresse agora, tudo
faria mais sentido...
É tão calado o fim do
mundo
dentro do meu pensamento,
que não consigo absorver devidamente
o abalo titânico
macrofilmado na película
da consciência.
No vórtice do tornado,
no olho do furacão,
encontro minha paz e minha
perdição.
Lembro-me da última vez
que vi
quem amei mais que a mim.
Incapacitado que esteja
de bem amar o que me seja.
Eu não sou o Leviatã,
mas apenas um desconhecido
e patético espectador.
Dois pequenos dentes e uma
cósmica solidão.
Ignorado pelo sultão
assentado entre as luas de
Saturno.
Pelo senhorio Macrocéfalo
banido
para tormentosas
latitudes.
Me perdi ao longo do
Estreito de Malaca,
Cruzei o Cabo Horn e o
Cabo da Boa Esperança,
um mar de lágrimas se
derramou e me cobriu
e entre suspiros, as
sereias em coro diziam:
“Metáfora alguma há
que supere em beleza seu
significado...”
(... e os significados se
somam,
interpõem, combinam e se repelem
sem esgotar jamais
sem esgotar jamais
o significante.)
O abismo oculta o segredo.
O amor subsiste,
talvez como uma âncora não
localizada
de antiga embarcação
naufragada.
A chuva é habitual
no reino do pós-guerra,
nas enseadas perdidas
e a envolver
velhos faróis adormecidos.
O velho marinheiro se
embriaga de lembranças;
abrem-se as comportas do
absurdo;
libertam-se os apenados
apenas para caírem nos
braços do vazio.
Sereias também erram:
a dor é a única verdade;
perdem-se as lembranças:
o velho marinheiro se
contrai.
Chega então o malfadado
momento:
céu e terra tremem
na tonitruante
expectativa.
E de repente saltam as
placas continentais;
a expulsão de magma vivo
afasta as nuvens
circulantes.
Mais alto,
mais alto que os gritos
paira o coro grandiloquente
das perversas divindades.
Chocam-se água e fogo,
saltam os horrendos
cetáceos:
o bosque de ferros em suas
costas
desprende-se e as farpas
chovem
sobre os aturdidos
mortais.
O grande maelstrom
não deixa testemunhas
terrícolas.
O que era um sonho de
independência,
emancipada realização,
coletiva extroversão,
afunda agora na insana
convulsão
dos elementos naturais.
Quem dera meus olhos
pudessem esquecer a
cena...
Nada pude fazer.
Está tudo acabado,
está tudo submerso
e os séculos que se
seguirão
tentarão ocultar a
história,
mas eu vi e aprendi a
lição,
enquanto o descomunal
sorvedouro do oceano
tragava seus minúsculos
filhos,
qual implacável divindade.
Uma malignidade
desafiadora
a expor seu ponto fraco
na própria covardia.
E toda dor que se pode
sentir
acometeu-se sobre a
absoluta inocência.
A absoluta inocência.
Absoluta Inocência,
AbSoLuTa InOcÊnCiA,
ABsOLuTA iNOcÊNcIA,
ABSOLUTA INOCÊNCIA,
LIBERTE-SE
DAS CORRENTES!
CELESTIAL
INOCÊNCIA,
SALTE
PARA O SOL!
(Nada pude então fazer,
além de contemplar e chorar...
e com minhas lágrimas
criar um novo mar...
e sobre ele navegar,
para o resto da eternidade...)
para o resto da eternidade...)
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