sábado, 10 de março de 2018

Há algo inexorável no fluxo da noite (13-24)




(Continuação)


13 – Juventude
(inusitada antevisão do fim de um mundo)


Juventude,
há tanto isso me ilude.
Seres que me envolvem
aqui, reunidos, desunidos em clãs;
rivais que convivem e pertencem.
Pertencendo –
há tanto eu pertenço.
Detalhes, aspectos, característica,
caricaturas inflexivelmente agrupadas,
radicalmente separadas.
Extinção, preservação;
caminhos condensados, passos desabalados;
tantos dias, tantas ocasiões,
tantas madrugadas árduas tentando acompanhar
este animal quase racional
que faz cálculos à toa, tropeçados na razão,
emitindo juízos precipitados
em todas as direções.
Em meio a isso, as oportunidades desperdiçadas –
tento esquecer deste outro fracasso
em nova dimensão psicológica.
Mas vejo claramente no que estou mergulhado
sem escolha e sem escapatória.
Alegre gado tangido.
Sombras tangíveis, velozes,
que se esgueiram pela rua,
querem ver o mundo com a “sua cara”.


14 – Possibilidades
(um pequeno surto de idealismo)


Antes fosse mesmo tudo isso
uma grande brincadeira;
mas afogam-se os prejudicados reais,
os adoecidos da alma em seriedade.
Se em algum dia
alguma nobre salvação luminosa se acender
e enterrados forem os preconceitos repugnantes,
bem como as palavras soltas que os amplificam,
as causas das palavras e os etecéteras,
aí então a luz e a sombra seriam
ambas igualmente pretextos para uma concórdia.
Uma excêntrica antecipação deste dia
exclama de dentro de mim:
“Ninguém é mais capaz sequer de prejudicar alguém;
ninguém tem motivo para isso,
pois todos amam uma cor,
todos amam uma melodia,
todos amam seu particular objeto de amor!
Eu posso gritar meus axiomas neste microfone,
e que venham todos agora
erguendo seus microfones;
transformemos a fantasia em realidade,
não a realidade em fantasia!”


15 – Fantasioso
(um nicho de sonho em meio à balbúrdia)


As fantasias são mais vivas
analisadas sob certa distancia,
coloridas de uma significação terrena.
Para quê, contudo, querer agora
colorir de cores pré-fixadas as fantasias,
quando estas nos atraem mais pelos nuances,
pelos realces, pelos claros e escuros
em combinação ou alternância,
e principalmente pelas variações
de cor e matiz?
Se valessem a pena as fantasias estanques,
estas não estariam assim como sempre estão,
contidas e presas ao Reino das Fantasias,
unicamente, longe de nossa Terra.
Pois tal é o fato,
tal é o que eu vejo,
ora distanciadamente, ora face-a-face.
Se tudo, aqui nesta realidade pétrea,
metálica, vítrea e plástica
tão repentinamente se tingisse
de alegria e pieguice,
acompanharia tamanha surpresa
uma brusca e dolorosa ardência...
Mesmo sendo um risco nobre de se correr.
Mas há um fator escuso, há um porém
que está à nossa espreita sempre:
a impiedosa maquinação da ilusão,
que pode nos atacar com voraz fulminância.
No desespero de aliviar a dor,
escapamos dela numa nova fantasia,
efêmera, melancólica, irônica e amarga,
porque apenas se apega a uma parte minúscula da realidade
e nem capaz é de mudar
as muitas desagradáveis realidades.


16 – Hostilidades
(rotinas do convívio humano que só agora parecem óbvias)


Então aqui está o corpo –
“satisfação da razão”.
Duvidando do acaso
– ausente ele ou não –
prossigo entre as novas trevas.
Trevas...
Encontro mais inimizades involuntárias –
simples olhares e palavras
mal interpretados.
Ao desviar da chama da discórdia,
acabei me queimando mais ainda.
Aprendo mais esta lição,
a da inevitabilidade do conflito,
em meio a qualquer meio humano.
Mesmo assim, há uma indiferença espalhada ao redor.
O ambiente é o supremo indiferente.
Mas a indiferença não poderia, agora,
tomar parte nestes relacionamentos.
No final, é uma zombaria sem risos...
Estamos todos no mesmo ambiente,
na mesma situação indiferente.
Nada poderá ser resolvido de imediato.
Parece só haver paz na eterna fuga.
As palavras agora quase não provocam reação
no sentimento fechado em si mesmo.
Naqueles em que a reação seria a esperada....
Joguetes do Oculto, nós?
As ruas nos esperam.
Penumbra, só do lado de fora
– se houver.
Vejo companhias de caronas
um tanto improváveis
e destinações inacreditáveis.
Quando não temos para onde ir,
encontramos segurança no lar do inimigo.
Se contendo para não rir,
a noite a tudo observa.


17 – Debandada
(a fachada da casa noturna)


A noite suspira,
contemplando o ziguezague motorizado
de suas ideias materializadas.
Últimos suspiros, frios, secos,
mas o fluxo não cessa:
parece até se intensificar.
Há uma calma estranhamente confortante
na calçada alheia às dúvidas noturnas,
que por um momento penso
terem elas se ausentado por um tempo breve.
Dois amantes abraçados ao meu lado
parecem nem conhecer um ao outro,
e por sinal não se importam com isso.
Um tipo de final feliz distorcido,
frívolo, parcial,
que brinca com a ausência dos imprevistos,
enquanto alguns metros adiante
um tumulto inexato está sutilmente começando.
À frente, a cidade faz entrever caminhos obscuros
que ocultam quase completamente a violência
(nada abstrata)
deste garoto fazedor de significados...
Ele se julga a si próprio um significado,
ainda que se desconfie originado
numa banalidade da vida
propagandeada com divinal imponência.
Significado-significador que ainda insiste
em decidir sobre o que não é capaz de entender.
Logo acima, o céu é cinza-chumbo.
O que perturba?
O silêncio frenético?


18 – Fuga
(um mergulho na noite urbana)


O silencioso suspense
nos arremessa de encontro à escuridão (externa).
Tento escapar disso – consigo, por um tempo –
e me projeto na misteriosa tranquilidade
de um inferno solene...
Presenças selvagens
vejo em ilhas de luz.
Cães uivam e latem ao longe;
perto, fogem.
A paródia do mistério vivido
pode estar à espreita atrás de cada muro.
Qualquer boa sensação,
em quaisquer situações que venham a ocorrer por aqui,
será lembrada
enquanto as noites existirem.
Dos maus momentos
– ocorridos, ocorrendo ou por ocorrer –,
eu fujo, ou creio poder fugir,
enquanto a noite em si foge também.
Tropeço nas ladeiras sem fim.
Corro na escuridão
que surge intensa, eterna
debaixo dos postes apagados.
Fujo da culpa.
Fujo dos culpados.


19 – Afetivo
(os passageiros sonolentos no banco de trás)


Na melancolia da garoa,
na velocidade da memória,
na sorte rígida e no azar justo,
a alma perdida encontra abrigo,
pequeno e temporário.
No cenário de nossos falsos julgamentos
permanecemos até o fim do sentimento
de incompatibilidade entre nossas semelhanças,
mera questão de tempo.
Pulsa seu coração noturno.
Há pulsação ao longe;
familiares ecos cadenciados.
Seu coração não bate
como o ritmo distante.
É uma batida que me traz esperança.
Encontro nela um ritmo variável,
como o verter e o rolar das minhas súbitas lágrimas,
caindo à toa, como a garoa
que se dissipa no volátil firmamento.
O que sobrou das nuvens
desintegra-se aos poucos
e entre as massas etéreas
surgem pálidas estrelas,
cintilando em irregular pulsação
no peito do infinito.


20 – Lugares
(a cidade vista da janela do carro)


O vento, que no início da noite
era delicadamente nervoso,
fica inerte por um curto tempo.
Ar que dorme?
Ar que dorme em nossos pulmões sonâmbulos.
O fim está perto do início,
em algum lugar além do horizonte oculto.
Voo na calma desta doce ilusão.
Você tem o perfume da madrugada.
Voe pelas ruas
artificialmente iluminadas,
perfumadas de mistérios,
o seu mundo urbano familiar, íntimo,
parte inseparável da sua alma.
Nada consegue se encontrar,
nada consegue se associar:
qualquer associação virá com o sol.
Mas algo já consigo antecipar em pensamento.
Para lugares que nunca visitarei de perto,
a bênção da fragmentada aura de vida
é levada pelo espectro do arrependimento.
A sonífera paisagem
dorme sem ser despertada
pelo som das tristes máquinas.
De fato, nem se percebe mais vento algum
e já é costumaz sentir o que não se vê.
O desespero do mundo
não se manifesta de todo,
mas vemos as centelhas de seu ilimitado alcance;
vemos a tranquilidade falsa que ele pode causar
sobre os sentidos.


21 – Final da corrida
(síntese de uma decepção)


A noite prometia renovar as coisas;
porém pesa dentro de mim sentir-me
incapaz de reviver
atores que apenas repetem seus típicos papéis.
Uma renovação de erros.
Inacessibilidade até mesmo do consolo:
pranto inevitável.
Por isso não importa
se as nuvens se deslocam,
se as pessoas trocam de parceiros sexuais,
se o dia vem chegando
e eu retornando...;
retorno derrotado por mim mesmo,
nos farrapos da contínua decepção.
Atravessamos tantos sonhos pelo meio
e me vejo chegando ao ponto de partida,
nas brumas da conformidade combatida.
E daí, dizer que as chances eram únicas?
O que realmente isso quer dizer?
De nada puderam elas me servir.
(Caso tenham existido.)
E agora, mais uma vez, a cidade foge
nas últimas pulsações da noite que se esvai.
A tristeza restabeleceu-se
em novos cânticos e metamorfoses cíclicas.
Nada se conserta.
A noite é uma existência:
nasce, cresce, se perde e morre.


22 – Meus passos
(caminhada na madrugada)


Acelero meus passos.
Acelero meu coração.
Ouço um silêncio onírico,
como se uma contaminação radioativa
houvesse acabado com toda a população.
Qualquer ilusão de esperança
poderia me torturar, mas há ao menos
algumas centelhas de sonho vivenciável,
de incerta procedência.
Ainda assim, é forte a sensação
de que jamais poderei recuperar
tudo que perdi no seio da noite.
Os pretextos que maculam a visualização
da maior fonte de minha salvação
parecem estar sempre lá,
não importando o que eu faça.
Inacessível, inatingível.
Ainda que mais tarde tudo eu perca de vez,
pensarei nas noites,
não como objeto direto de admiração,
mas como mais uma das fantasias nebulosas
que se sobrepõem continuamente,
enquanto o mundo concreto, mesmo prosseguindo,
permanece constante,
redundante no ofício de gerar ilusões
e desilusões cantaroláveis
para quem possui ao menos o dom de suportá-lo
de forma estética.


23 – Vizinhanças
(absurda impressão de que nada aconteceu)


Sonharei então com sonhos?
Viverei na fruição da lembrança
de algo que não pude ter
na superfície do mundo?
Talvez eu possa desta maneira
encontrar uma certa paz de espírito, parcial,
que me faça esquecer
que não posso abraçar os que choram,
a quilômetros de nós-de-garganta de mim.
A rua geme,
meu coração zumbe.
Uma janela faz companhia ao poste.
O residente que desperta
nem sabe o que se passa
com aquele que aqui passa.
Corre veloz o sangue dentro de mim.
As formas;
todas continuam lá.
Como se nada tivesse acontecido.
Prevalece a invariabilidade,
a dureza, a frieza
e, principalmente, a rigidez
do que é externo a mim.
Na minha cabeça tudo pode voar,
planar, levitar;
mas, fora dela, as coisas
estão afixadas nos mesmos lugares
de sempre.


24 – Aurora misteriosa
(prelúdio a um sonho)


E lá está o sol,
entre as nuvens vermelhas,
intervindo no frio matinal.
Velho ciclo de renovação.
Todos os dias ostentam o mesmo astro,
mas cada dia difere sempre do outro.
Yin-Yang, tônus paradoxal,
óbvios sobre óbvios –
tal é a obviedade do ciclo
ao qual todo mistério se adapta.
Mas, e quanto ao próprio mistério disto?
Seria um círculo vicioso
ou uma redenção?
À qual acepção devo me ater?
Mas sei que não sou mais o mesmo.
A mudança é sempre interior
eis o drama!
Há um mundo psicológico coletivo
que se entrega deliberadamente
ao que lhe é externo...
e não posso me desconectar dele.
Não me dou o direito
a essa covardia.
Agora, o que tenho de alternativas
se acumula à distante latitude.
A própria lucidez quer dormir,
para não ter de morrer.
Os pássaros gorjeiam, tristemente,
tristes com sua rotina.
Minha individualidade,
essa solitária não comunicação
jamais expressa em longos poemas
e músicas confidentes,
espera por algo a esperar.








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