1 – Prelúdio
Descansávamos sob a árvore. Nada tão
simples como um “antes nunca do que tarde”, num mundo tão claro... A vida através
de um momento, um clarão plácido, um entorpecimento lindamente oportuno, alvura
/ brandura sem igual. Cantigas de sonho, cantigas de feitiços, ânimo recém
assimilado, nada tão suave quanto um verso cultuado. Alguns dias... Vidas.
Descansamos sob a árvore. Os
pensamentos flutuam, as folhas se roçam ou caem com fragilidade na água límpida
– espelho de inocência. Os pardais rumo ao horizonte – o lápis repousa – sua
face é seda – o cheiro do verão – as cores descansam – de vez em quando uma a
se destacar. Correm as crianças, destruindo calculadoras eletrônicas, cantando
o ontem em seu suave pular-cordas; cantamos, sorrio e a brisa corresponde.
Flutua a não necessidade de promessas. Dançam as nuvens. Ao longe, o escuro
matiz. Ao longe, o fim da tarde. Alguns dias... Vidas?
O forno rústico queima a empada; a
lagartixa resolve criar asas; sempre há o que se esperar quando o tempo é um
ator; cinco-quatro-três-dois-um: o lápis se quebra.
2 – Profecia
Eis o sol em primeiro plano, no lugar
escolhido à esmo pelos ciganos, para festejar, enquanto mustangs troteiam no campo e a música muda de direção. Igualmente o
videoclipe, entre névoas e mais névoas. Grossa bruma, cegando o astro...
Não, não é o mundo das letras.
Escalo. Mais e mais, tentando chegar,
tentando alcançar um lugar ao sol. Lá no alto do monte rochoso, encontro o
Pégaso de Ébano, doente das asas, a balbuciar:
“Agora é sonho tão real, mas já se
foram os meteoros! Onde estão? Os aguardo ansiosamente. Não mero grão cadente,
mas soberba pedra reluzente! Escalei esta elevação com grande esforço de minhas
pobres patas, e agora nem ao menos escuto aqui os trevos verdes a germinar.”
E o equino ergue-se solenemente, ainda
que com dificuldade, e mira o mar:
“Esqueçam as profecias! Se porventura
vierem a interpretá-las, completamente nulo será o valor delas.”
Anda em direção ao ponto mais abrupto
(antes uma ave pousada em seu negror não mais lustroso) e de lá despenca,
cortando o ar como um falcão, para afundar como um mergulhão.
3 – Espanto
(Volto ao meu recanto enganador.)
Estranho os pássaros falarem tanto.
Suba na árvore; ouça! Não é aqui, é lá – nas cercas brancas, empoleirados; nas
nuvens baixas, encolerizados; nas sarças, firmes, acasalados ou nas garras de
algum predador. Os galos perderam também a noção da hora costumaz de berrar.
Surge, além das colinas, a artilharia.
Rouquidão, estridência; cucos tagarelando – sobre sua cabeça!, não em relógios
de parede. Agora, aqui são muitos, entre esfomeados jacarés do Mississipi e
dragões de Komodo que nos perseguem!
Tantas bocas, tantos dentes, caudas
blindadas; dotadas, porém, de toda flexibilidade em fúria.
Então explodem barrancos, borbulham as
pedras à nossa volta, enquanto dentro de nosso crânio a música que nos foi
imposta acelera nossa adrenalina, com boas e más consequências. Gigantescos
maxilares querem nos engolir; criaturas de todos os tamanhos e de igualmente
variadas intenções.
Fujamos das bocas que se prendem em
nossos pés, agora escorregando, sempre se amputando e imediatamente se
recompondo. Fujamos antes que o céu caia, antes que o silvo das serpentes abafe
nosso grito – único modo de podermos nos comunicar. (Prometi que jamais
gritaria com você – perdão!!!)
4 – Panorama
Campo aberto.
As sombras dos arbustos saem de seus
lugares. Massas de nuvens vivas, vivas e tonitruantes, cobrindo toda a extensão
do céu (não podemos fechar os olhos), não param de rosnar, entre os ventos que
zumbem. Os pinheiros, no limite de nossa visão, torcem-se antes de dispararem
como foguetes ao céu. A terra treme e não conseguimos correr, como se
estivéssemos momentaneamente enraizados, em nosso choque perturbador.
Luzes no céu! Desçam e não provoquem
suspense; mostrem-se em impetuosa procissão, pois também voaremos – bem o
podemos – e então prepararemos o futuro final, um supra-terreno futuro;
devaneios de efeito devastador! Defesa, ataque, fuga, confronto, amores nunca
imaginados e...
Corte!
Agora é hora de refúgio!
Voemos no dorso de pteranodontes para o inóspito oceano onde estão as ilhotas
indicadas pelo ancião. Rápido! Antes da chuva de relâmpagos, antes dos ventos,
às vezes medonhamente controlados, às vezes terrivelmente cegos!
5 – Mar
As tropas estão chegando... Mas não há
tempo para admirar a imponência das caravelas mecânicas ou a surrealidade dos paraquedistas,
caindo para cima sem a mínima suavidade. Nossa lancha acelera cada vez mais,
desviando-se dos rochedos e dos krakens
ameaçadores, passando através dos tubos das ondas e dando incríveis
cambalhotas, e nem mais sei o que é céu e o que é mar, mas não estamos longe
agora e, por isso, prossigamos olhando apenas para frente.
“– Amigos, não esqueçam jamais de
nosso objetivo: esquecer qualquer objetivo em detrimento do incremento
psicológico.”
De repente, milhões de pardais
marinhos (e eu nem sabia que isso existia!) formam uma nuvem giratória,
ciclônica, levantando a água numa tromba que serpenteia para acima das nuvens
que se condensam mais e mais. Explosões espetaculares, de todas as proporções,
em todas as direções, despertam todos as coisas enormes: cetáceos, dinossauros,
moluscos e todos os seres mitológicos imagináveis; alguns cuspindo e tragando
água, outros tragando e cuspindo fogo.
Tiros ressoam de vários pontos e são
inevitáveis o sangue, o suor e as lágrimas, que se misturam na e à água para
desta forma impulsionar as águas-vivas saltadoras e constituir novo e sagrado
plâncton.
6 – Vermelho
Agora a chuva; a tempestade: o quê
mais? É como se nunca houvesse existido paz ou soluções fáceis para desatinos.
O medo e a adrenalina supersônica parecem as únicas instituições confiáveis.
Deixemos as ondas nos levar até a
gruta coralínea, que logo nos abriga; e lá, num único longo minuto, revelo
táticas e discuto planos; aperto torniquetes e reponho membros; e o salgado do
antes doce mar se justifica, pois foi o suco da vida, drenado dos cortes das
vítimas, tanto dos agredidos quanto dos agressores, que salgou toda sua
imensidão.
“– Zelo por cada um de vocês, mas de
suas vidas vocês são os donos.”
Súbito, de um submerso vulcão
oceânico, irrompe uma enorme torre de inconfundível líquido vermelho – algo que
não paralisa a ação, mas antes inflama ainda mais o frenesi apoteótico que
intensifica sua dança de guerra em torno do agora gêiser probosciforme, que splatcheia com a máxima e desalentadora
violência, erguendo o mar numa vaga também ciclônica, que aterroriza até os
peixes mais masoquistas. A plataforma de pescadores, mesmo com sua maquinada
locomoção, não escapa de ter corroída sua espantosa estrutura ambulante, com a
erosão de um milênio em um minuto.
7 – Tormenta
Agora é correr, porque o vento sopra
cada vez mais forte; as águas tumultuam-se; as vagas engolem a si mesmas; os
recifes escarpados e os bancos de areia saem de seus lugares; a tremenda tromba
d’água desaba sobre os monstros marinhos; o impulso do nado das arraias é
inútil ante à força que as conduz ao vórtice, que também trai a si mesmo,
porque sua força é mero caos e a voragem se autodestrói para transformar-se em
algo ainda mais assombroso que a iridescência das nuvens, que se sobrepõem,
ziguezagueando como serpentes – tempestade multicolor que toma rumo múltiplo,
multidirecional, caótico, pois a água não afoga, mas fere; o céu cai e
prossegue; o mar levanta voo e despenca; o vento impulsiona os seres alados e
estes se chocam na escarpa daquela rocha isolada em alto-mar, erguendo-se qual
um agudo Olimpo em meio à corrente desabalada, deslocada, tresloucada,
impetuosa quebrando o ritmo da maré selvagem: as nuvens, ostentando cores
quentes, correm, baixas e altas, entre estrondos, respingos, tiros e
relâmpagos!
8 – Batalha
Mas sabemos o que está por vir...
Acelere o veículo; rasteje agora, salte! Prometo lhe encontrar depois do
vendaval, entre a multidão dos aflitos, sobre os montes que tremem aos passos
do dragão descomunal... Ninguém mais consegue se equilibrar; o mundo rodopia,
se sacode; o rio varre a aldeia; o tufão lambe o bosque; as montanhas implodem;
barcos viram aviões que logo são abatidos pelos raios-laser imprevisíveis; as
luzes nos apontam, vomitando o fogo que nem a água pode deter. Bruscamente
matam uns quinhentos e ressuscitam seus cadáveres para que também lutem por
eles.
Então nos separamos; o sangue jorra; o
fogo cria vida; fogo cuspido por pterodáctilos velozes, como todas as máquinas
de voar que estão a se chocar, entre o pânico dos soldados remanescentes que
berram feito sirenes – suas entranhas berram, exultando a horrenda agonia de
toda sua angústia visceral, absurda, inconcebível, incontrolável!
9 – Frenesi
Não olhe para trás; continue correndo,
sempre, jamais pare, em hipótese alguma! Se lhe segurarem, CONTINUE CORRENDO;
se lhe barrarem, CONTINUE CORRENDO; se lhe ferirem, CONTINUE a acelerar seu
sangue, que sempre corre mais, mais, mais; mais longe possível é para onde você
deve ir agora, esquivando-se das labaredas e dos jatos de óleo fervente...
Aaaaaaah!!! Por pouco você não é
surpreendido pelo indescritivelmente descomunal, imenso, colossal, terrível,
assombroso, tremendo, incomparavelmente estrondoso tsunami que se ergue, para sepultar em sua queda, para o resto da
eternidade, uma dúzia de frotas + meia de arquipélagos, fora os atóis, as
enseadas; – todo o universo está contra você, até mesmo sua própria vida ou a
sua mais confiável intuição!
Jamais confie no chão em que você
pisa; e, por mais impossível que seja, TENTE equilibrar-se e continuar correndo
incessantemente, o mais que você puder. É tudo uma questão de fôlego: sempre
que você se sentir exausto, imagine que seu desespero mal está começando!
10 – Ápice
E o ar é a pura ação de um jogo sem regras: montanhas
de nuvens podem esconder em seu bojo penhascos mortais, que constantemente
fazem jus ao adjetivo; mil criaturas no céu e outras tantas no mar e na terra
tornam este nosso dia derradeiro um espetáculo fantasmagórico de nunca vista
grandiloquência, pois todos os sonhos dos elementos da batalha são postos à
deriva e engolidos pelas ágeis serpentes marinhas que gargalham
histrionicamente sob o firmamento que arde num ciclone que brinca
impiedosamente com cada partícula que rasga, tritura, torce e arremessa longe;
logo saímos voando de olhos fechados rumo à orgia boschiana que exclama entre
engasgos:
“– Corra, mar! Corra, mar!”;
então vibram as espadas e a profecia
milenar, qual registro de incontáveis grãos de areia, é insondável, insípida
frente a sua condensação – cruel materialização que a nenhum oráculo respeita e
vira as costas aos desesperados, que pranteiam em terror!
11 – Esvaimento
Começam a cair, brilhantes em sua
humildade, festivas estrelas cadentes.
De repente, num salto de libertação,
emerge, poderoso, o negro cavalo alado, para sobrevoar os terrenos eventos.
E todo o oceano está em brilhante
vermelho, quando surgem enfim os raios do sol. Cardumes de incontável número de
baleias e afins rasgam a superfície como ceifadoras de vastos campos de trigo
maduro. Toda e qualquer espécie de monstro traga o resultado de tantos esforços
vãos. Sorvem o horror com desmedida gula, até agonizarem em indigestão. Rolam
sobre sua própria tolice, sem perceber que não abriram a boca para o plâncton
verdadeiro... Regurgitem tudo! bigodudos misticetos; deixem um saudável vazio
entre as barbatanas bucais, não filtrem mais com auxílio delas (elas não têm
mais serventia).
Acabam por fugir, os irracionais
dragões. Os vulcões são chafarizes de um líquido inflamável aromático que faz
queimar apenas o que é inorgânico de alma. O terror, abrandado, só aterroriza
como num antigo filme de suspense. Os prantos transformam-se em ecos que se
esvaem na neblina matinal. A multidão sobe na montanha e, boquiaberta, a tudo
acompanha. O vocalista da banda de rock dá uma pausa para beber água. Os
remanescentes enterram seus mortos, enquanto os que perderam a vida, em
tormenta ou em combate, igualmente sepultam (no ar) suas mortes. As baleias
finalmente aprendem que indigestão e remédio amargo são o mesmo, e que o que
realmente interessa vem após as dores.
O sol, já intenso, inunda a face do
globo, mas não vem para queimar. O mar flui qual manso açude. Surpresos, os
pássaros se calam por certo tempo.
12 – Agoras
Venha, vamos descansar tranquilamente
pela primeira vez na vida, nesta vida de calendários e relógios, como já
descansamos outrora, em sonhos atemporais. Nossos sonhos estiveram sempre
desenvoltos além da circunscrição espaço-tempo, e nunca como distante
nebulosidade. Estaríamos aqui, de sempre presente / invariável certeza...
Venha, cavalguemos o Pégaso rumo ao
lugar do qual nunca saímos, mas como se ali nunca tivéssemos colocado os pés do
passado. Este lugar nunca nos decepcionou; já se passou o que nos ludibriava há
tempos. Agora é Agora, e, sem sombra de dúvida, construímos nossa libertação
numa inusitada espécie de fuga de tudo que prenderia nossas mentes, e de nada
que nos fosse concretamente platônico, pois buscávamos não temer o planctônico
que não é mais o nosso cardápio. Vivamos agora no estável, dignificando o
produtivo da irradiante apreciação das melodia naturais, de tudo que se
transforma ante à luz e do sopro do vento, por meio do qual mandamos a todas as
direções a inesvaível força que conquistamos.
Venha! Descansemos sob a árvore.
(Março de 1994)
Nenhum comentário:
Postar um comentário