sexta-feira, 30 de março de 2018

A periferia do Império





Dardos envenenados voam em curva por sobre as casas de barro e chumbo dentro das quais a população se agacha para orar suas orações secas e plásticas como as circunvoluções dos cérebros dos seus deuses alto-falantes. Mas quase ninguém ali se dá conta de que todos os dardos e discos farpados tão comuns nestas noites festivas são lançados e recebidos pela própria parte simplória da população. É esta parte que geme e chora seis dias por semana e aproveita o sétimo para extravasar sua frustração em forma de pedradas sobre as novas atrações deformadas geradas em laboratório que incrementam os palcos e picadeiros dos shows de aberrações oficial do governo imperial. Uma visão superficial poderia apenas dizer: este populacho é que é seu próprio algoz. Apenas uma percepção mais aguçada das entrelinhas dos fatos revelaria o real e original culpado.

Quando fomos abordados por aquele profeta-mendigo de turbante chamado Allah Kerin, nem pensamos em rir do insólito, tamanha era a convicção do holograma diante de nós. Ainda nos deixávamos enganar pelo programa ou aplicativo que nos fazia ignorar os mistérios reais e urgentes diante da ressaltação dos mistérios ilusórios e forjados pelas ditas forças da ordem.

Seja como fosse, uma certeza já podíamos ter naqueles dias: nenhuma insurreição poderia partir de criaturas entretidas com preces, pedras, dardos e hologramas. Era uma suspeita que cresceria em nós com o passar dos anos e após todas as cascatas de lágrimas secretas nos quartos escuros e banheiros insalubres. Alguma engenharia deveria ser operada naqueles mentes atrofiadas...

Era óbvio que não poderíamos mais permanecer à espera de um messias libertário. Seria uma desculpa para nos refugiar no medo sedutor. As crianças mudas que se arrastavam pelas ruas tinham um olhar tão terrivelmente suplicante que uma pessoa de bem só conseguiria dormir em paz após afirmar cem vezes diante do espelho a sua própria inocência. Mas quem acreditaria que pudesse existir isso – inocência – numa hora dessas? Talvez fosse alguma culpa ou tormento íntimo que nos estimulava a continuar respirando. Fosse o que fosse, merecíamos um ar muito mais puro. E a utopia que respirávamos tinha agora um quê de além de virtual.













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