sábado, 10 de março de 2018

Há algo inexorável no fluxo da noite (1-12)




Novo Hamburgo, abril de 1993.


1 – Ainda longe
(expectativa no fim da tarde)


Está lá longe.
Mas chegarei até lá, inexoravelmente.
Uma batida inexorável, no rádio,
me faz pensar.
Seria orgulho o que me impele?
Antes fosse...
Sim, isto aí: antes era.
Agora é meio um sonambulismo hipnótico...
mas tenho plena consciência do transe magnético
noturno.
Mesmo alertado das mentiras unidas às verdades
na soma das situações.
Não importa se o som se apaga agora;
há um fluxo que continua nos levando a um ponto morto
nada fácil de explicar.
Tento antever o invisível, imaginar o inimaginável
e arremesso minha atenção para longe
do conforto da reflexão especulativa.
E o ritmo se repete, repete-se
o tumulto, a surpresa rotineira;
todos correm para o conforto
e o ritmo amansa aos poucos.
Os pássaros acomodam-se nas árvores,
cada um no seu galho,
enquanto a noite vem.


2 – Fluxo
(movimento do início da noite)


O céu está carregado de ondas.
Palavras pairam sobre os bairros,
ao redor dos morros,
acima de nossas cabeças.
Ouvidos atentos
ao bramido dos veículos.
Parabólicas nos topos dos prédios.
A frenética coreografia urbana
e a cenografia dos luzeiros suburbanos
são frágeis espasmos de vida,
entre a solidão da lembrança
e a crueldade da dúvida.
A noite flui,
leva consigo a velha esperança
para dar lugar a uma nova.
Esta é a sua função,
sua obrigação.
O sol morreu:
a cidade está de luto.
Acende velas
e festeja com ironia
a impermanência das coisas
que vão embora para sempre
com o fluxo da noite.


3 – Velhas novidades
(cruzando o Centro Histórico)


Do ônibus contemplo a exótica mistura
de prédios antigos “históricos”
com os modernos.
Bem como construções e demolições
lado a lado.
O que se faz nas almas
que nesses meandros circulam?
Quebram tradições
e não percebem que o ato de quebrá-las
já se torna mais uma tradição.
Não revisando fatos,
nem construindo algo realmente novo,
apenas brindam às tradicionais destruições
provindas apenas de desejos destrutivos primários.
E agora aí estão coisas de pé,
ruínas e construções.
A vida é assim;
assim é a cidade;
o fato está na boca dos renovadores,
mas não é dito porque eles presumem
que não seja algo que consigam falar em alto som.
Resta agora de sólido e persistente
o que ruiu sob as luzes da noite.
Das noites, as muitas,
que só agora surpreendem o novo notívago,
saturando-o de vãos ideais de renovação
que longe estão de dar lugar
a um Renascimento autêntico de ideais vitalizantes,
que aos renovadores renove
através de um mecanismo gerador de originalidades
que só pecariam se viessem a se vangloriar
pelo mero motivo de serem novas.


4 – A cidade à noite
(contemplando um conhecido panorama com novos olhos)


A cidade, nítida ao anoitecer,
é um pesadelo florido
de estranhas expectativas.
O céu derrama as primeiras gotas de incerteza,
as ruas não querem lembrar do passado,
ouvimos em toda parte o zumbido do vazio,
vemos o vazio diretamente,
vemos que vemos
e a noite continua lá.
Ruídos desconexos – o silêncio é para quem o quer.
E mesmo sem senti-lo,
sabemos que ele impera na distância.
A noite segue,
dialoga com nossos sentidos,
me faz quase imaginar, por um segundo,
que eu poderia tranquilamente deixar tudo assim
– colorido, distante –
e me apegar à assimetria das esquinas.
Como carregar o peso da imaginação.
A noite parece agora mais clara que o dia.
A luz solar ilumina menos que o neon
e os postes
e os faróis
o que podemos ver, enxergar no escuro.
O que queremos?


5 – Tempo e clima
(absorvendo todas as sensações possíveis, antes mesmo
do evento principal)


Como silêncio aqui, um som ao longe.
Como o som aqui – noções
de tempo e limitação
nunca poderão nos apanhar fora daqui,
à noite,
em qualquer noite.
A cidade protege seu bem e seu mal.
Mistérios do pensar e do sentir
– sobre-estimulados.
Pensar o que se sente torna-se agora fácil,
bem como o vice-versa.
As coisas bem poderiam ficar como deveriam
– isto é, como queremos que devam ficar.
Mas ainda não temos o comando do tempo,
do clima e da situação.
Orgulho, esquecimento;
sombras de outono.
Pensamentos obscuros
numa madrugada de inverno.
Ação, sentimentos;
saudades de primavera.
Descontração e entusiasmo
numa madrugada de verão,
numa madrugada irrequieta
de pensamentos, sussurros e gritos,
de aliciantes enganos.


6 – Movimento urbano
(começando o contato com os notívagos)


Olhamos para o chão,
quando sobre nós
algo enevoado parece nos incriminar.
Algo óbvio que está em cada beco,
inevitável em cada esquina
e eu aqui, considerando-me satisfeito
por não estar à mercê deles,
se é que aqui me encontro realmente
e não sou mera sombra
de mim mesmo.
Volta a consciência de que as horas seguintes
– iluminadas, impacientes –
estarão fora do alcance
desta mesma consciência.
Voltam os fracos pingos.
O mundo é escuro e claro em insana alternância;
o mundo pulsa;
o mundo dança e foge do escuro
para se refugiar em outro escuro.
Procure causas...
As presenças já vêm se arrastando
em busca de satisfação
nas profundezas do esquecimento.
Os antros do artifício.
Encontre efeitos...
O tempo aqui parece curto
para as crias do desaviso
que prosseguem no espaço traidor.
Prosseguem.


7 – Os que evitam pensar
(considerável senso de não pertencimento)


E lá fora, acima de tudo,
paira a ironia,
auto-indulgente, robusta, fria.
Caminham pela calçada
seres que ignoram os mistérios absurdos
e, justamente por isso,
deles tornam-se parte.
Neles vivem,
se divertem, se aborrecem,
obedecendo automaticamente
às leis produzidas por outrem,
mas aceitas passivamente
pelas almas e cérebros
que em sua não funcional memória
arquivam eventos devastadores,
embora de semblante trivial,
e a ninguém poupam
em suas improcedentes delações
e arbitrárias condenações,
que partem de juízos que se definem,
de seu minúsculo ponto de vista,
por apenas dignos de obediência,
simplesmente,
visto terem surgido da conveniência dos privilégios
destes propósitos respirantes / ambulantes
que evitam pensar
em reavaliar seus conceitos de justiça
só para poderem descontraidamente
caminhar na calçada.


8 – A dita centelha
(a busca pelo real calor humano)


Passos inaudíveis
são respirados na atmosfera sólida.
Só um detalhe,
uma luminosidade, aquele preciso detalhe
daria segurança.
Mas as sombras não se questionam.
Ouço comentarem que alguém conhecido
havia rolado por uma escada
num delirium narcótico.
Sem maiores detalhes.
Lembro então da cena de um videoclipe realista,
mas parece agora que tudo está bem, afinal,
nos ambientes onde nos movemos,
talvez por serem simplórios os olhos
daqueles que veem.
Enquanto isso, permaneço me perguntando:
“o que tornaria os sorrisos eternos?”
Não quero uma falsa liberdade;
quero espaço para minha mente se mover.
Se houvesse ao menos aquele brilho,
então faltaria pouco para a jornada iniciar.
Mas nada disso ocorre.
Há muitos fracos nesta noite
e, se estou aqui
– se é que não sou mais um fraco –,
seria eu um covarde
por não saber como ajudá-los?
Eu preciso tanto de tantas coisas
e não consigo tirar do esconderijo
os olhares sinalizadores de caminhos.
Eu preciso que alguém precise de mim.
Mas nada disso ocorre.
É inexorável.


9 – Claustro
(o ambiente parece hostil à vida)


Não quero ver
que parte do que julgam que eu seja
está chafurdando em um lodaçal coletivo,
comprimido contra cantos,
na penumbra furtiva
ou sob luzes artificiais,
grosseiros disfarces das sombras.
Eclipse, eclipse humano
total diante de mim.
Olho para o ser de luz
ou para o ser de sombra?
Não sei o que é a verdade profunda disso,
mas há algo na minha frente
e em mim
precisando encontrar definição.
Mundo pequeno! Mundo de claustrofobia,
moldado em carne e concreto.
Aço e carne. Carne e carne.
Sombra e aço. Concreto.
Sombras dançam,
sombras pensam.
Carne.
Há algo que eu procuro.
Além das paredes, além de mim próprio.
Vida na carne?


10 – Delirioso
(no auge da festa, não se sabe mais o que é real)


O escuro me traz calor,
me faz suar,
seja onde for.
Então acenda alguma luz,
traga nem que seja penumbra
– ela pode ao menos trazer alguma poesia.
Se a claridade é o absurdo,
as trevas são o mistério elementar.
O vazio do intenso branco deve desaparecer
para dar lugar a um branco mais substancial.
Mas não posso eu sentir-me bem no escuro,
sabendo que o claro existe em algum lugar?
Só um detalhe...
Um detalhe, meus Deus, agora, agora!
Não é tão real assim.
Aí meu chapa, tudo legal? Você é real?
Ei você, responda!
Leve-me para o silêncio.
Viva bem sua pequena vida,
viva bem.
Sólido, imóvel, imutável.
Todos são tão sólidos
– justamente isso é o que parece irreal agora.
Caminhe para a direita ou para a esquerda
– você não deixa de ocupar espaço.
Onde? Como??


11 – Lacônico
(festival de inseguranças)


Sou assim tão incapaz?
Não quero imaginar
que já fiz tudo que podia...
Muito pouco – tudo está do mesmo jeito.
Consegui chegar tão longe
e agora vejo que não adiantou;
não consigo prosseguir.
Suspense nos meus poros.
Cores e vozes.
Cores do desejo.
Temo desejar algo
e pedir,
pelo alto risco de não receber (e perecer).
Não perguntarei,
pois não responderão – eu sei.
Não consigo rir,
enquanto ainda houver possibilidade de que no final
seja a tristeza o que me restará. (Caberá?)
A mudança almejada
não ocorrerá verdadeiramente
enquanto eu não puder garantir que mudem
aqueles a quem cabe fazer a mudança.
Devo lutar,
mas preciso de habilidades a longo prazo
para este tipo de luta.
Devo me libertar de minhas limitações então
– ao menos uma sábia emancipação
estratégica.
A resposta estará, como sempre,
no ar.


12 – Vozes
(um súbito pertencimento?)


Estreitando consciências,
eles vão formando pátrias, vidas, dias claros; 
e à noite, a descarga de adrenalina
não consegue mais fazer frente a tal onda diária
de números e informações exatas,
de palavras e pausas tão carentes
de resultados mais sociáveis
sentidos por todas as vítimas emudecidas
desta trama redundante.
Para as engrenagens da esperança
parecerem então funcionar,
o único jeito agora seria ignorar o não funcionamento
num temerário contentamento passageiro
que mascara o presente
da frágil convivência.
Obedeço forçadamente a este recurso
porque convivo
– convivo com a dor.
As vozes da dor.
Grupo de presenças
que o tempo parece não mudar,
vejo o seu futuro, sei o seu passado.
Não importa como ele será.
Não queria ter este dom num momento desses...
Vejo que tudo corre lado a lado com elas,
as vozes da noite.
A dessemelhança na semelhança.
Ouço a elas, completo o fracasso.









Nenhum comentário:

Postar um comentário