sábado, 31 de março de 2018

Os amuletos de marfim





Os rostos que passam ao lado não mostram expressão; posso seguir com minha imaginação os borrões de luz nos cantos de meus olhos – e os borrões continuam sem expressão, naturalmente. Alguma coisa a ver com a redondeza do sol. Tudo que faça ofuscar e matizar.

Sapatos pretos. Bueiros. Não gosto disso. Os letreiros de neon continuam insistentes, apesar do dia claro. Eu preferiria uma cidade menor – não sou nem Frank Sinatra nem Liza Minelli.

Deveria haver um cometa logo acima, sei que sim... Mas ele deve ter feito um acordo com as nuvens. Elas se concentram estranhamente sobre onde eu passo.

Essa vontade súbita que meu olho tem de pingar diante das árvores no acostamento tem muito a ver com a relação canção-cabeça-travesseiro. De fato, sempre existe algo muito mais transcendente do que sonham nossas guitarras elétricas. E mais uma vez me vem a certeza de que essa transcendência se encontra no mais cardíaco âmago da realidade experimentada. A volubilidade das coisas não me tira a constatação.

Ora, a cidade é menor do que antes: é como deveria ser. O gigantismo nunca existiu. Muito menos o neon: é tudo imaginação, tudo fumaça. Os sonhos podem ser soprados – apenas os passos prosseguem ruidosos na calçada. 

Mas, se o dia é tão claro e a cidadezinha tão frágil de se entender, por que então parei diante da porta-de-abertura-escura que corta a rotina, ou melhor, o óbvio? Deve ser o fator transcendência, ou o cometa, que cansou de brilhar à toa. Bem, de qualquer forma, não existe mais cometa, nem cidade, nem calçada, porque já entrei pela porta e o que existe agora diante de mim é apenas um corredor.

Não, não há nenhum corredor diante de mim. Não como o entendemos: trata-se de uma loja, uma loja comprida e profunda, um tanto escurecida + nebulosa, mas repleta de detalhes fantásticos a serem consumidos pelos olhos e pelos dedos.

Sim, agora me lembro! – é este o lugar que eu vinha procurando, desde que saí do vilarejo vizinho, escalei a colina verde e passei a manhã ensolarada vagando/vasculhando pelo centro populacional. Sim, tudo se encaixa. Estou mesmo no lugar certo. Basta agora lembrar pelo quê eu vinha vasculhando – isto tudo TEM QUE ser real.

Não sei se meus olhos e dedos têm permissão para saborear os exóticos acervos. Acervos, digo, pois o lugar mais parece um museu, se bem que o que parece pó é até bonito, um grande efeito. Pó de artifício: como nunca pensei nisso? Talvez haja teias de aranha de artifício aqui.

Os balconistas (balcão à direita) devem ter muito a dizer, mas nada fazem além de folhear antiquíssimos volumes. Afeiçoei-me pelo mais idoso, apesar da expressão austera, talvez devido ao turbante que usava, ou às sonoras pulseiras. Um conjunto pitoresco... adequado ao ambiente.

Uma cabeça de unicórnio, empalhada (?) em lugar de destaque. Relicários e estátuas. Fetiches voduístas. Livros em quantidade inumerável, souvenires indescritíveis e um tanto atraentes. Vestimentas incríveis suspensas ou em manequins. Tabuleiros com gravações místicas, cifradas, intrigantes. Candelabros e candeias de muitas formas. Um trono ornamentado de esmeraldas; sobre ele, um ídolo de madeira nada majestoso. Incensórios a emitir eflúvios saborosos – milenares pranas. Máscaras com múltiplas expressões e cores entremeadas de cabeças encolhidas que parecem espreitar... e eu revido com minhas espreitas – aliadas a um desejo sincero de interação.

Um tremendo susto! levo ao ver o velho de turbante bem ao meu lado.

– May I help you, Sir?

Bom saber que ele sabe um inglês básico, pois inglês básico eu também sei.

– Do you have something special to show me?

– Yeah, yeah. Just follow me.

"Ele é Mongol" – diz uma voz em minha cabeça. Sigo-o até uma pequena mesa que parece ficar bem no meio da loja/antiquário. O homem pega de cima dela uma caixinha vermelha e a estende a mim. O jeito que ele me olha parece pedir ou, quem sabe, ordenar que eu a abra. Sorrindo com um leve toque de constrangimento, tento abri-la e percebo que é um tanto difícil – chega a ser cômica a tentativa demorada de destrancar o pequeno trinco dourado. É mais cômico ainda por causa do olhar irritantemente calmo do homem sobre mim. Mas consigo a façanha, e encaro então o conteúdo.

– These small ivory-made pieces concentrate a sort of energy that only a phew would comprehend...

São pequenas peças de "marfim" (podem ser em osso ou em dentes de animais, não sei dizer) de aproximadamente nove centímetros, alongadas e pontiagudas. São poucas, mas não consigo contá-las. Lembram dentes de tubarão, embora de formato mais fino. Há diferenças sutis entre elas, detalhes dos entalhes. Julgo que sejam amuletos. Certamente algo bem místico.

– They have their names and their own skills. I'm sure you'll find one which fits your needs. But you must choose it soon. Your great chance.

– Names? You said?

– Yeah, yeah. Look closer... Here is Mohammed. Here, Moshe. Uhm... let me see... Buddha... Yeshua... Zarathustra... Lao Zi is here. And others...

Segurando-os e comparando-os, percebo que o diferencial é quase sempre no meio do objeto. Seja uma aparente torção, ou ranhuras, ou buraquinhos. Natural agora que eu concentre minha atenção naquele que corresponde à minha cultura na atual encarnação. Ele é simples, porém muito intrigante. Seu centro possui um tipo de cintura que é uma torção espiralada idêntica a um dente de narval ou chifre de unicórnio, e bem no meio dela, um orifício quadrado que atravessa o objeto, como que à espera de um cordão para ser pingente. Difícil saber o que Jesus Cristo teria a ver com aquilo... Poderia eu saber?

– Fico com este. Ops... I said, I'll buy this one.

– Great, great choice! 

Corte súbito. Estou caminhando por uma estrada de terra, que atravessa um campo. Um pasto. Ambiente idílico, porém mais sereno do que deslumbrante. Creio que seja de manhã, e provavelmente no dia seguinte à minha singular aquisição no antiquário da cidade mutante cujo nome ou localização já esqueci.

Óbvio que estou pensando nos tais "amuletos" de "marfim" e no que eles poderiam significar. No que consistiriam as energias supostamente contidas neles, e as tais funções ou "habilidades". Tento me lembrar de mais alguma coisa que o velho Mongol poderia ter me dito, acerca de como utilizar ou acionar os dispositivos, se é que são mesmo dispositivos.

Então as coisas ficam repentinamente mais claras. Eu só adquirira um: o tal Yeshua. O popular Jesus. Estava o carregando comigo, num bolso. E compreendo, por intuição, que a maneira adequada de usar o objeto (pelo menos para saber para quê ele servia!) era, digamos... inserindo-o no meu corpo. Não sei nem de quê jeito, e nem aonde inserir... Sorrio então porque acho essa questão engraçada; aliás, não mais e nem menos engraçada que as grandes verdades costumam ser.

A estrada agora adentra uma região mais arborizada, típica floresta ou bosque. De aparência acolhedora, hospitaleira, serena, receptiva. Gosto do cheiro do ar puro, o misto de aromas de possíveis flores, e folhas, e seivas. Nem posso hesitar em seguir em frente – mesmo sem saber conscientemente aonde a jornada me poderá levar.

Logo me vejo seguindo pelos flancos do que pode ser uma montanha; no caso, a topografia só levemente inclinada. A estradinha é pequena; a mata que a ladeia é espaçada e possivelmente fácil de se deixar embrenhar, se tal for preciso.

Repentinamente, um "clique" iluminado e iluminante dentro de minha cabeça. Certeza de que o "amuleto" já está, 


(...)



(Inacabado)








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